Viver para quem não nos quer vivos

Rafael Muller

A literatura tem uma função interessante: escancara-nos as crenças contraditórias em nós mesmos e das quais não conseguimos nos desvencilhar. Numa espécie de retrospectiva pessoal terapêutica, peguei-me pensando sobre os dizeres do escritor Lev Tolstoi (uma referência que cumpre até parte da função paterna para mim, em tempos de solidão adolescente), em sua obra Felicidade Conjugal, “existir na vida apenas uma felicidade indiscutível: viver para outrem” (TOLSTÓI, 2010).

O processo de formação do sujeito, inclusive pedagógico, dá-se num modelo mais ou menos em pilha (sabemos que a vida é mais complexa do que isso, mas simplificamos e usamos de metáforas mentais para organizarmos didaticamente o pensar). Verdades vão sendo acumuladas, postas umas em cima das outras, até formarmos aquilo que temos para nós de autoconceito e referências para nos posicionarmos.

Depois, o processo de desconstrução do sujeito – outro processo doloroso – dá-se a partir da retirada dessas verdades acumuladas, relativizando-as. Usualmente ocorre no sentido inverso (de cima para baixo), uma vez que a relativização de uma verdade muito basal poderia desconstruir de uma só vez todo o sujeito e gerar uma crise quase incompatível com a existência.

Paulatinamente, o dogmatismo que nos constroi (as verdades absolutas que vão sendo postas) vai sendo substituído pelo ceticismo que nos aprimora (as verdades vão sendo relativizadas). As verdades de criança, entretanto, muitas vezes sustentam-se: aquilo que há de dogmático mesmo em nós, céticos. “Viver para outrem” é uma dessas verdades em mim. Dita por Tolstoi há muito tempo e vez ou outra revisitada explicitamente – mas prontamente muito constante em minha vida.

Dessas reflexões decorrem duas: uma de cunho mais antropológico e outra de cunho mais filosófico (apesar dos limites entre essas disciplinas ser, por vezes, bastante nebuloso). Do lado antropológico, remonto a Louis Dumont, estudioso das hierarquias e que vai dizer que ela está em todo lugar na cultura humana. De fato, uma pergunta que me faço é: por que nos formamos sobre verdades? Por que o dogmatismo é precedente em nós? Como seria uma educação e pedagogia cética desde a sua origem? Na luta entre dogmatismo e ceticismo, o primeiro-Dogmatismo é tido como englobante e superior para uma maior parte da população (dizem: “é preciso conhecer a verdade”). O segundo-Ceticismo é a mera alternativa, mas é ela quem nos aprimora (questionando as verdades postas).

Isso nos leva ao cunho filosófico: contraditoriamente, ao educador (em sentido amplo), “viver para os outros” é “viver para quem não nos quer vivos”. Ora: em tempos genocidas, vivemos para desconstruir verdades absolutas inculcadas nas mentes humanas como “bandido bom, é bandido morto”, “todo imigrante é bandido”, “temos que pagar a dívida pública”, etc. E ao sermos abolicionistas, internacionalistas e críticos da dívida pública ilegítima, ao fazermos nosso trabalho de base, vivemos para tornar mais humanos aqueles que nos cunham defensores de bandidos e caloteiros, os mesmos que nos querem mortos.

Já dizia Tragtenberg (2012): a função do educador é paradoxal. Ele o dizia quanto a criticar o sistema escolar e, ao mesmo tempo, reproduzi-lo. Mas também é paradoxal neste sentido: vivemos para desconstruir o dogmático (os dogmas) que há nos outros e construir o cético (a reflexão crítica, que coloca em dúvida o dogma) que há em cada um de nós. Como todo ser humano é uma mistura – em proporções diferentes – de dogmatismo e ceticismo, viver [ceticamente] para o outro é viver, também, para aquela parte dogmática do outro que nos detesta.

 

Para saber mais:

LEIRNER, Piero de Camargo. Hierarquia e Individualismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

TOLSTÓI, Lev. Felicidade Conjugal. São Paulo: Editora34, 2010.

TRAGTENBERG, Maurício. Educação e burocracia. São Paulo: Editora Unesp, 2012.


Imagem de destaque: Tânia Rêgo / Agência Brasil

 

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