Urgência de verdade e reparação histórica na comemoração do Bicentenário da Independência em São Paulo

Fabiana Garcia Munhoz*

… permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir

AmarElo

Emicida (part. Majur e Pabllo Vittar)

O rapper paulista Emicida com a sua “caneta que não para” tem reescrito as narrativas do povo preto por meio da arte. Ir além das cicatrizes e colocar o foco no protagonismo dos povos e grupos sociais subalternizados é condição para que o passado coletivo seja mobilizado na constituição de identidades democráticas e reparadoras e do compromisso com a verdade.

Às vésperas do Bicentenário da Independência do Brasil, a gravidade do racismo na nossa sociedade exige um intenso, amplo e urgente engajamento antirracista. A manutenção da escravidão, na independência do nosso estado, alicerçou a constituição da nação sobre bases opressoras e violentas. Essas sequelas não foram superadas e se manifestam no racismo estrutural que nos assola cotidianamente. Embora esse fardo seja nacional, é necessário reconhecer que, em São Paulo, a memória coletiva ainda privilegia sobremaneira personagens colonizadores e extremamente opressores.

Nas diferentes cidades do país, é possível localizar uma diversidade de lugares de memória que remetem ao processo de independência do Brasil. Na capital paulista não é diferente. São Paulo tem, no bairro do Ipiranga, um conjunto arquitetônico construído com o objetivo de celebrar o evento da proclamação da independência pelo príncipe regente. No primeiro verso do hino nacional menciona-se o “brado retumbante” às “margens plácidas” do rio Ipiranga.

O acontecimento se tornou um dos marcos fundadores da história oficial da nação e foi idealizado, mais de 60 anos depois, na pintura gigantesca de Pedro Américo, “Independência ou Morte” (1888). O quadro histórico fez parte das ações da Comissão do Monumento do Ipiranga. Apesar dos planos de construção de um monumento terem sido traçados nos anos seguintes a 1822, as obras só foram iniciadas em 1885, no final do período imperial. Em 7 de setembro de 1895, quando o Brasil já havia se tornado uma república, foi realizada a inauguração solene do Museu Paulista como museu natural, alinhado aos ideais positivistas da república.

Com a virada do século e a aproximação das comemorações do Centenário, em 1922, as elites intelectuais e políticas se engajaram na ampliação do conjunto monumental, como estratégia de forjar um lugar de centralidade simbólica para São Paulo na comemoração do evento ocorrido 100 anos antes. O passado foi evocado para se desenhar um futuro no qual São Paulo ocuparia um papel preponderante, visto que no início do século XX, o estado concentrava poder e riqueza.

Em 1916, inicia-se a instalação de uma grandiosa seção histórica que privilegia o mito bandeirante; contribuindo para a cristalização de uma memória que exalta tais sujeitos como construtores não só de São Paulo, mas de toda a nação. Nessa narrativa, exime-se os bandeirantes da responsabilidade pelo genocídio dos povos indígenas e negros e por suas ações de destruição ambiental.

O Portal do Bicentenário vem se somar à ofensiva crítica ao bandeirantismo. Uma parte significativa dos docentes da educação básica, professores do ensino superior, pesquisadores, imprensa, arte e o próprio Museu Paulista vem realizando a crítica há algumas décadas; contudo, muitas são as rodovias, avenidas, edifícios, estátuas e escolas que permanecem homenageando os bandeirantes sem explicitar a verdade que os condena. Alguns exemplos significativos da manutenção dessa memória são o “monumento às bandeiras”, inaugurado em 1953 e tombado em 1984 e o poema “hino dos bandeirantes”, instituído como hino do estado de São Paulo em 1974.

Em 2016, o “monumento às bandeiras” e a estátua de Borba Gato foram alvo de contestações por meio de banhos de tinta. As ações antirracistas de 2020 reascenderam a discussão em torno das estátuas e a urgência da verdade sobre o passado genocida, escravagista e assassino de muitos desses homenageados. Houve a sugestão de se retirar estátuas; realizar intervenções que explicitem a verdade – como colocar faixas nas quais se lê “genocídio indígena”; colocação de placas, textos ou códigos QR que explicitem quem fez as estátuas, por que e os motivos das contestações.

No último Dia da Consciência Negra, 20/11/2020, foi inaugurada uma estátua em homenagem a Joaquim Pinto de Oliveira (1721-1811), conhecido como Tebas, na Praça Clóvis Beviláqua, face leste da Praça da Sé. Em 2018, ele havia sido reconhecido como arquiteto e homenageado por sua contribuição à arquitetura paulistana. Tebas foi um mestre em cantaria – ofício de talhar blocos de rocha para a construção de edifícios. Ele teve uma atuação modernizante importante numa cidade onde predominava a taipa e foi um homem negro escravizado que conseguiu a alforria.

Comemorar é rememorar coletivamente. Assim como Emicida ocupou o Teatro Municipal de São Paulo para a realização do lançamento do seu álbum AmarElo, em 2019; as comemorações do Bicentenário da Independência devem ser ocupadas por narrativas emancipatórias da diversidade do Brasil, como a de Tebas, pelo reconhecimento social dos genocídios e violências realizados e estratégias de reparação às populações violentadas.

Na próxima semana, as pesquisadoras Laís Olivato e Taís Temporim de Almeida apresentarão outros olhares sobre São Paulo no processo de independência e o Bicentenário. Não perca!

* Doutora em Educação – USP. Professora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental Rede Municipal de Rio Claro SP.


Imagem de destaque: Fachada do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Foto: Eduardo A. Farha

 

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