Universidade e livre-pensar sob ameaça

Alexandre Fernandez Vaz

Há poucas semanas a administração central da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, veio a público esclarecer que não era verdade que nas instalações da instituição realizar-se-ia o II Congresso sobre Satanismo da UFSC. A direção do Centro de Filosofia e Ciências Humanas somou-se à Reitoria para afirmar que nenhuma reserva de auditório ou de outros espaços fora feita para tal evento. Que se tenha que fazer tal desmentido, é sintomático do estado de coisas em que estamos, uma vez que se considera que, sim, há quem acredite em informação tão absurda.

Como estamos condenados a levar a sério o que não poderia ser levado a sério, o acontecimento dá o que pensar. Para além da evidente anedota que daí deriva, o assunto é mostra de mais uma tentativa de desmoralização da Universidade, em especial das Humanidades. Isso também se materializa no sem-número de opiniões que se tem ouvido de futuras autoridades governamentais: não há mudança climática no planeta, o aborto não é problema de saúde pública, não houve ditadura civil-miliar no Brasil. Estas e outras ideias com frequência são pronunciadas a reboque de fantasias conspiratórias e regressivas. Ora, não se trata de ter uma opinião sobre a ocorrência ou não desses fenômenos, uma vez que eles são objetos da ciência, antes de serem – coisa que de fato são – problemas políticos.

Para minimizar os efeitos do câncer há muitas pesquisas de excelente qualidade e rigor sendo feitas em várias partes do mundo. Elas podem ser criticadas em seus métodos, instrumentos, premissas epistemológicas, mas devem estar imunes à mera opinião, uma vez que são assunto para especialistas. De forma semelhante, Sociologia e História são disciplinas do conhecimento que empregam métodos e procedimentos rigorosos de investigação, submetendo-se a evidências empíricas e a constructos teóricos para a sustentação de seus argumentos.

Parece haver entre os brasileiros um sério descrédito em relação à ciência, tomada de forma dogmática, por um lado, ou, por outro, como lógica vazia de sentido humano. No primeiro caso simplesmente se acredita nela, uma vez que não dominamos, em geral, suas premissas e procedimentos; no segundo, coloca-se as práticas científicas em conflagração com crenças de todo tipo, com vantagem para as últimas. Sim, um cientista não é uma divindade e exatamente por isso há uma diferença entre ele e um curandeiro. Ao contrário deste último, ele não pretende ter poderes sobrenaturais.

Também por isso a escola pública é algo tão importante no Brasil, sendo provavelmente a grande (e única) chance de camadas populares embarcarem em uma visão de mundo laica e fincada na materialidade histórica. Considero que a Universidade como instituição, em especial com seus Programas de Pós-graduação em Educação, pode e deve ocupar-se do fortalecimento da educação básica. Deveria ser esse um compromisso permanente e irrenunciável.

A batalha não é das mais fáceis, a considerar, por exemplo, declarações da futura Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Segundo se pôde ler na imprensa, a advogada Damares Alves, ex-assessora parlamentar do senador Magno Malta, entende que as crianças devem ser tratadas como príncipes, os meninos, e como princesas, as meninas. É certo que a Monarquia quase ganhou seu quinhão no Executivo, já que um príncipe de verdade (sic) foi cotado para ser candidato a Vice-presidente, ficando, finalmente, com a vaga de deputado federal por São Paulo. Mas, chistes à parte, essa é uma visão de infância com a qual não podemos concordar. Alves se remete a abusos que sofreu quando menina para reforçar seu amor pelos pequenos. Há que ser solidário com ela e com todas as vítimas de violência, mas isso não autoriza que a mandatária dos direitos humanos se expresse, como agente público, dessa maneira. Colocar entre parênteses a posição privada é fundamental para quem atua na esfera pública.

A posição da futura ministra encontra eco, claro, na do presidente eleito. Há algumas semanas, logo após a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), Jair Messias Bolsonaro assim se manifestou sobre o tema da redação:

[Olha] Essa prova do Enem, vão falar que eu estou implicando. Agora pelo amor de Deus. Esse tema da linguagem ‘particulada’, aquelas pessoas, o que isso tem a ver? Vai estimular a molecada a se interessar por isso agora. No ano que vem, pode ter certeza, não vai ter questão dessa forma. Nós vamos tomar conhecimento da prova antes.

Já dá para imaginar a constrangedora situação: o Presidente da República se ocupando do tema da prova do ENEM, tentando evitar, a todo custo, qualquer discussão sobre diversidade. Mas isso não é o pior. Ainda mais lamentável é supor que a crianças e jovens possa estar vedado algum conhecimento, de maneira que devesse haver um desestímulo ao que seria, nessa visão apequenada, inadequado. Isso, aliás, é que os deixa vulneráveis, a falta de conhecimento, gerando medo, preconceito, insegurança, solidariedade de menos.

Haverá também temas ou métodos de pesquisa que serão proibidos?

Nos anos 1960, Theodor W. Adorno ministrava uma disciplina de Introdução à Sociologia. Ao final da última aula, aproveitou um comentário sobre um desafeto intelectual para dizer da importância de que cada um tivesse plena liberdade de expor seu pensamento, mesmo que em completo desacordo com o dele. Livre-pensar é uma prática de liberdade. Adorno era democrático. E de esquerda.

Que 2019 não seja pior que o ano que finda, que venha sem o espírito do famigerado Ato Institucional Número 5, que ontem completou anos, e que anda tão à nossa volta.

Ilha de Santa Catarina, Pântano do Sul, dezembro de 2018.

 

Imagem de destaque: Nathan Dumlao

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