Universidade Administrada (III) – exclusivo

Alexandre Fernandez Vaz

No sistema de ciência e tecnologia os periódicos exercem um papel central. Os habitantes do sistema estão mais ou menos de acordo que, via de regra, é nas revistas científicas que a melhor e mais recente produção de um campo é divulgada. Multiplicam-se os periódicos e as plataformas, há inclusive os que publicam o artigo antes que ele seja publicado. Sim, isso acontece por um mecanismo que se chama Ahead of Print (AOP), em que pese o fato de que de fato a revista não sairá em papel e, portanto, não haverá impressão.

Mesmo com a profusão de artigos, os livros ainda aparecem com muita importância, principalmente para as Humanidades, mas a valoração acadêmica não deixa dúvidas sobre o que representa um artigo publicado num periódico bem ranqueado. Uma das razoes para isso seria que um livro demoraria muito para ser publicado, de maneira que o conhecimento perderia sua atualidade. Além disso, tratando-se, com muita frequência, de um empreendimento comercial, haveria, para além de sua pertinência e qualidade, critérios de mercado a reger sua publicação ou não. Esses problemas os periódicos não enfrentariam, uma vez que geralmente não têm fins lucrativos, recebendo recursos humanos e materiais de instituições públicas, entre elas as agências de fomento.

Tudo isso é verdade, mas não completamente. A considerar o tempo médio que muitos periódicos levam para avaliar e, se aceito, publicar um artigo, não é possível dizer que a velocidade é maior do que aquela do aparecimento de um livro. Por outro lado, se é fato que um livro é um produto de mercado, os periódicos frequentemente desenvolvem estratégias de sobrevivência (na maior parte dos casos) ou de avanço (na menor parte) que originalmente são do mundo do business. O trabalho de editoração se transformou em algo muito complexo, caro e demandante de vários profissionais, mesmo que a progressiva e aparentemente inexorável renúncia à versão impressa tenha cortado custos e etapas de produção.

Mas, podemos ver as coisas por outro lado, e dizer que parece que é mesmo no mundo digital, e não do papel impresso, que um texto torna-se “imortal” ou quase isso, uma vez publicado. Diga-se de passagem, por mais sedutora que possa parecer, esta não é uma posição totalmente cômoda, a de estar condenado a nunca desaparecer.

Alguns artigos em separado oferecem o resultado de um projeto de pesquisa, mas um livro talvez possa, ao reunir ideias não mais esparsas em um único volume, dar ao leitor um fio de Ariadne que facilite o acompanhamento mais demorado de argumentos e evidências. Sempre fica, no entanto, para um e outro suporte de ideias, a possibilidade de uma correção, a autocrítica que permite refazer um percurso e aperfeiçoa-lo. Em um caso, trata-se de uma nova edição, em outro, exige-se a redação de outro artigo.

Os artigos evidentemente apresentam a vantagem potencial de uma circulação mais ampla. Um artigo publicado numa revista brasileira pode ser acessado em qualquer parte do mundo, enquanto um livro mais dificilmente estará disponível em outro país, uma vez que estaria, a princípio, a necessidade de que fosse traduzido. Não é comum, ainda que aconteça em notáveis exceções, que um livro seja publicado em um país em outro idioma que não seja num dos que se considera oficiais. No Brasil eventualmente são publicados livros com capítulos em outros idiomas, na Europa é um pouco mais corriqueiro que volumes inteiros saiam em Inglês.

Mas um artigo publicado no Brasil e escrito em Português será lido em outras partes do mundo? Em poucos lugares, possivelmente, na maioria dos países seguramente não. Encontramos então outra questão, que é da publicação de um texto em um idioma que possa ser lido por acadêmicos em qualquer esquina. Este idioma, desde mais ou menos meados do século passado, é o Inglês, de forma que muitos periódicos de diversos países publicam os trabalhos aprovados no idioma da Grã-Bretanha e dos territórios que ela ocupou e que foram se tornando países no ritmo das guerras de descolonização e do desenvolvimento dos Estados Nacionais. O predomínio do Inglês como idioma científico não é obra original dos britânicos, mas dos estadunidenses, na medida em que a partir dos anos 1930 sob o New Deal de Franklin Delano Roosevelt seu país foi vencendo guerras, não apenas nos campos de batalha, mas também na ciência e na indústria do entretenimento.

Não foi sempre assim. Quando escritores, pesquisadores e artistas judeus alemães e de países ocupados pelo Nacional-socialismo se viram obrigados a emigrar, um destino frequente foi a França, não apenas pela proximidade geográfica, mas porque o Francês era, na sombria década de 1930, o idioma da vida intelectual, assim como fora da Sociedade Cortesã. Quando a França foi ocupada e em parte uniu-se com o terror nazista, os Estados Unidos da América apareceram como esperança e, portanto, foi preciso aprender Inglês. A correspondência entre as amigas Hannah Arendt e Mary McCarthy mostra as orientações da escritora a uma das maiores intelectuais do século vinte que nunca pôde dominar de fato a língua do país que a recebeu. Theodor W. Adorno, por sua vez, não deixa de ponderar em Experiências científicas na América as dificuldades com a correção de seus textos escritos em Inglês. Não por acaso, à pergunta de por que regressara à Alemanha uma vez finda a Guerra, respondeu que procurava voltar à língua de sua infância, àquilo que o constituiu.

Eis que neste momento, como nunca antes, a comunidade científica brasileira se depara com um gesto mais decisivo no sentido da obrigatoriedade do Inglês como sua língua, sua Pátria. A importante base Scielo lançou, em setembro do ano passado, uma orientação aos periódicos nela abrigados, segundo a qual há metas de internacionalização a serem cumpridas durante o ano de 2015[1]. Observe-se que a base tem como norma publicar artigos em qualquer idioma, mas dá ênfase ao Português e ao Inglês. Segundo diferentes percentuais, correspondentes a áreas temáticas de conhecimento, um número de artigos deve ser publicados em Inglês, assim como cada periódico deverá incorporar autores e revisores estrangeiros também em quotas específicas.

As Humanidades são as que têm que cumprir a menor quota de artigos em Inglês, com piso vinte por cento para Linguística, Letras e Artes, e a recomendação de trinta por cento para Humanas e para Ciências Sociais Aplicadas. A área temática Saúde deve chegar preferencialmente a um quantum de oitenta por cento de papers. A Scielo permite que um artigo seja publicado em mais de um idioma, de maneira que ficará a cargo de cada periódico motivar ou exigir a submissão em Inglês, incumbindo-se ou não da tradução. O intuito é que os periódicos brasileiros circulem internacionalmente com mais desenvoltura, o mesmo acontecendo com as pesquisas aqui realizadas e divulgadas em nossos veículos.

Já há vários periódicos que publicam artigos prioritariamente ou exclusivamente em Inglês, assim como muitos pesquisadores brasileiros apresentam seus trabalhos tão somente neste idioma em periódicos brasileiros, mas, sobretudo, em estrangeiros. Isso acontece com frequência nas Ciências Naturais e se de fato encontramos cada vez mais artigos de Humanidades em língua estrangeira em periódicos indexados na Scielo, esta não é a regra.

Observo esse movimento como pesquisador e editor de periódicos. O processo convida à reflexão pela importância do tema e da base Scielo, cujo trabalho em muito tem potencializado a pesquisa e suas divulgação, não apenas no Brasil. Gostaria de ater-me, neste momento, a apenas duas questões, talvez sintomas do nosso tempo. A primeira é por que às Humanidades se exige um percentual muito menor de trabalhos publicados em Inglês do que para outras grandes áreas. Porque estamos pouco acostumados com esse exercício, mas paulatinamente seremos exigidos à publicação no “idioma da ciência”? Ou porque não carecemos de internacionalização?

A isso se alia outro problema, a meu ver bastante desconfortável. Escrever um artigo em Humanidades não precisa ser um exercício de estilo e em geral é melhor que não seja, mas isso não anula o fato de que nelas há que se trabalhar com uma dimensão da linguagem que vai para além da mera comunicação. Refiro-me ao momento expressivo que um texto deve conter, de maneira que sua forma é também conteúdo. Um artigo científico, este subgênero literário, deve ter a forma que lhe corresponde, mas dentro dela – ou transbordando-a – pode haver graça e beleza, saturação de ideias, experimentação. Um ritmo que, por exemplo, mimetize o objeto. Há lugar, portanto, para recursos expressivos. O quanto será possível algo disso em idioma estrangeiro? O que resistirá desse edifício próprio depois de uma tradução cujo êxito exigirá nada menos que um serviço profissional de primeira linha cujo resultado terá que ser visto e revisto pelo autor, talvez sem sucesso? E por que o autor deveria, então, publicar em um periódico brasileiro e não submetê-lo a um veículo estrangeiro? Um periódico de Educação não deve falar para a realidade brasileira, mas apenas sobre ela?

Há um momento de verdade para as Humanidades nesse movimento, que é o de atentar-se um tanto mais não apenas para as obras clássicas em língua estrangeira, mas também para os artigos que vêm sendo produzidos por colegas de outros países. Em Educação, por exemplo, temos feito pouco isso. Mas o que está em jogo é o risco do desbaratamento de uma tradição. Que esse caminho não seja inevitável e que o Português possa seguir sendo também uma língua a expressar algo, já que nela há pensamento. Livre de subterfúgios ou quotas percentuais.

Petrolina, abril de 2015.

 

[1]  Critérios, política e procedimentos para a admissão e a permanência de periódicos científicos na Coleção SciELO Brasil. São Paulo: FAPESP, setembro de 2014 (http://www.scielo.br/avaliacao/20141003NovosCriterios_SciELO_Brasil.pdf).

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