Alexandre F. Vaz
Em uma conferência nos anos 1960, Theodor W. Adorno fez uma severa crítica ao culto ao trabalho e às formas de dominação exercidas por meio dele, entre elas, o tempo produzido ideologicamente como “livre” nas práticas de lazer e consumo. Para Adorno, o trabalho organizado sob os auspícios da sociedade capitalista, mesmo em tempos de Welfare State, não deixaria de ser incessante danação. Mas ele faz uma ressalva e toma a si mesmo como exemplo. Compor música ou ler de forma concentrada um texto seriam atividades que não poderiam ser separadas como relativas ao trabalho ou a seu âmbito oposto. Ambas seriam, e Adorno não deixa de observar-se como privilegiado, expressão do mesmo impulso que o manteria ligado ao mundo.
Em minha experiência universitária, o exemplo mais próximo que pude testemunhar dessa condição descrita por Adorno é a trajetória do Professor Selvino Assmann, que se aposenta compulsoriamente da Universidade Federal de Santa Catarina nos primeiros dias da próxima semana. Chegado aos setenta anos de idade diz-se que é hora de deixar a Universidade em que trabalha há quase quatro décadas. Não é com alegria que ele se vê na fronteira da instituição. Alguém dirá que nada muda porque a condição de voluntário lhe é facultada. Ele vai aceitá-la, mas não é a situação que mais agrada. Por que obriga-lo à aposentadoria? Porque com isso não se abre uma nova vaga docente? Mas ela de fato seria essencial, nessas circunstâncias, no interesse do serviço público? Deixo a necessária resposta para outra oportunidade e faço um breve relato que talvez diga algo sobre a Universidade.
Na primeira vez em que vi uma dissertação de mestrado ser defendida, eu ainda era estudante de graduação. Lembro-me de ter ficado impressionado com a qualidade da pesquisa e igualmente com a discussão proposta pela banca examinadora. Anos depois soube que fora a primeira dissertação apresentada no Programa de Pós-graduação em Educação, por muitos anos o único de Santa Catarina. O ótimo trabalho de Beatriz Cerisara, sobre a educação da infância em Rousseau, foi orientado por Selvino, respeitosamente chamado pela autora de “desorientador”.
De fato, Selvino não é um orientador em sentido mais óbvio. Da velha Escola que espera que a dissertação e a tese sejam trabalhos autorais, as reuniões de orientação com ele sempre foram, pelo menos para mim, grandes experiências intelectuais, encontros em que o pensamento era exercitado com rigor e precisão, mas também com alegria.
Conheci-o como Professor em 1992, quando ingressei no Mestrado em Educação da UFSC. Naquela época não começávamos o curso com um projeto propriamente dito, mas apenas tínhamos uma vaga ideia do que fazer. Tampouco entrávamos já com orientador, que só vínhamos a ter passados alguns semestres. Logo de cara fui aluno de Selvino e fiquei fascinado com suas aulas. Naquele ano cursei duas disciplinas com ele e em dezembro presenciei sua aprovação para Professor Titular, concurso que foi um verdadeiro seminário sobre Filosofia da História em Hegel. Mais que isso, uma lição sobre o que é a responsabilidade do pensamento.
No ano seguinte, mais um curso, desta vez sobre Antonio Gramsci. Acostumados com uma leitura algo dogmática do filósofo italiano, meus colegas e eu fomos brindados com a riqueza conceitual e política que emergia das aulas. Grande conhecedor da história política, social e intelectual da Itália, país onde viveu durante onze anos, Selvino nos mostrava um Gramsci vivo, crítico da educação, da ciência e do populismo, teórico da política e analista da história. Eram anos de governo democrático e popular na cidade de Florianópolis, e nosso Professor de Filosofia compunha o conselho político da Frente de partidos que ainda se viam como socialistas ou, pelo menos, socialdemocratas.
Depois de duas décadas atuando no Programa de Pós-graduação em Educação, e já compartilhando o tempo com o Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, para cuja implementação foi decisivo, Selvino migrou para o Programa de Filosofia. Uma perda que nunca pôde ser compensada, mas que, finalmente, foi tristemente assimilada porque as preocupações da pós em Educação passaram a ser menos a formação sólida e de longo prazo e mais as metas a serem atingidas pelos relatórios de produção.
Daqueles anos para cá Selvino continuou o mesmo, mas sempre outro, fiel ao espírito, ainda que não totalmente à letra, do Mestre Hegel. Tornou-se um singular intérprete de Foucault, cujos cursos então e por longo tempo permaneceram inéditos no Brasil, mas que ele já recomendava no princípio dos anos 1990. Começou também uma prolífica atividade de tradução e interpretação da Obra de Giorgio Agamben e da agenda deste filósofo, caminhando, no entanto, para além dele. O que não mudou foi a curiosidade infinita, a disposição para o debate, a desconcertante capacidade analítica, a dedicação à docência.
Fiel à ideia de que o exercício filosófico se dá, em boa medida, no diálogo que constrói o pensamento, Selvino fez da sala de aula sua Ágora. Aulas à noite, carga horária excessiva, nada fazia esmorecer esse Professor que nunca usou um retroprojetor ou um aparelho de datashow, que abusou das anotações manuscritas e do giz. Que fez de si e de sua fala, de sua escuta, a potência do pensamento, na graduação e na pós-graduação, igualmente e sem distinção.
Não tenho dúvidas de que Selvino é, para a Universidade que vivemos hoje, um bicho raro, personagem anacrônico. Fruto de um tempo em que prazos e metas não apontavam para o esgotamento do horizonte reflexivo, pôde ler e refletir, preparar suas aulas, pensar e fazer suas digressões, arriscar e formular com liberdade. É preciso ter coragem para levar adiante esse projeto, renunciando à aprovação dos pares, e o Mestre a teve. Por isso livrou-se da vulgaridade da vida vivente, tão presente entre nós. Pensar, elaborar, conversar consigo mesmo e com os outros. Com calma e humildade perante o conhecimento, mesmo com sua tremenda erudição. Sem medo.
Tudo isso foi e é para Selvino não apenas mero trabalho, mas o mundo que ele ajudou a construir. Fica a admiração e a esperança de seguir com ele. Ou como disse Sócrates a Fedro, o convite que Selvino sempre mantém, “porque são comuns as coisas entre os amigos”: “Caminhemos”.
Campinas, maio de 2015.