Subjetividade para além do próprio umbigo: educação, gênero e diversidade

Henrique Caetano Nardi

O termo subjetividade surge com diversos sentidos no senso comum e na linguagem acadêmica. Ele usualmente remete para algo que é próprio ao sujeito, pela ideia de um interior psíquico, contrário ao que é objetivo, palpável; também pode ser associado ao que é impreciso, da ordem da opinião. Esse sentido está presente no campo da educação, da saúde, da assistência, da justiça, entre outros.

O que proponho aqui é que se pense de forma distinta, buscando a não dicotomia entre o social e individual, no entrelaçamento entre o que é da cultura, dos regramentos sociais e da forma como pensamos o que somos e como decidimos nossas ações. Cabe ressaltar que de forma alguma esta proposição supõe uma ausência de decisão ou de possibilidades de escolha, mas busca pensar o que nos é imposto ou oferecido pela cultura, sobretudo desde a modernidade e reforçado pelo neoliberalismo. A ideia do indivíduo soberano rege as hierarquias da meritocracia, das relações de poder entre brancos e não-brancos, ricos e pobres, jovens e adultos, países do Norte e países do Sul, homens e mulheres, cisgêneros e transgêneros/travestis/não bináries, corpos magros e corpos gordos, pessoas sem ou com deficiência, heterossexuais e homossexuais/bissexuais/assexuais etc.

E por que isso é importante? Porque as pesquisas que temos realizado indicam que essa lógica rege o preconceito, a discriminação, a patologização de formas de ser, as razões para não intervir em situações de discriminação e preconceito nas escolas, uma vez que são tratadas como um conflito individual, o “caso tal”, ao invés de pensar que a proteção de todas/os estudantes na sua diversidade é responsabilidade constitucional. O preconceito se situa no campo das relações de poder, ele é uma forma de desqualificação do outro que age como justificativa para a dominação de um grupo sobre o outro, como, por exemplo, homens sobre mulheres, heterossexuais e cisgêneros sobre homossexuais /bissexuais/ transsexuais/ travestis/ não-bináries, brancos sobre negros e indígenas.

Assim, inspirado na definição de Michel Foucault, proponho que pensemos a subjetividade como a experiência que o sujeito faz de si na relação com aqueles discursos que têm efeito de verdade em um determinado tempo e contexto. O que esse conceito nos permite pensar? Que estamos sempre nos experimentando como sujeitos, nos perguntando que caminho seguir, sobre os valores que determinado grupo, cultura ou sociedade valoriza em detrimento de outros; ou seja, como faço para que me amem, para que tenha sucesso, para ser feliz? Essas questões que me pergunto e que me perguntam deveriam ser antecedidas por: o que é amor, o que é sucesso, o que é a felicidade? Isso inclui pensar em que sociedade vivemos e em que sociedade queremos viver.

Buscando sair de um plano mais abstrato para um mais concreto, basta pensarmos na situação de uma menina lésbica ou de um jovem gay nos anos 1960 e hoje no Brasil. Naquele período, a homossexualidade conjugava as marcas da doença, do pecado e da imoralidade. Hoje, embora o preconceito e a discriminação se façam ainda muito presentes e tenham sido exacerbados na virada de extrema direita que o país vive após o golpe de 2016 (cabe lembrar aqui o caráter misógino do golpe), as e os jovens têm acesso à informação na internet, têm proteção jurídica e há o reconhecimento da diversidade das famílias. Isso permite maior grau de liberdade de existir na plenitude dos direitos. Direitos esses conquistados na aliança dos movimentos sociais na disputa com outros saberes instituídos como o de determinadas formas de fazer ciência e da religião. Entretanto, nas nossas pesquisas, a escola pouco assumiu o engajamento em defesa dos direitos humanos, mesmo antes da virada conservadora e do surgimento das cruzadas anti-gênero que usam o termo ideologia de gênero para justificar a interdição do debate sobre as desigualdades, o preconceito e a diversidade nas escolas. 

Ao propor pensar a subjetividade como experiência de si na relação com aquilo que tem sentido de verdade em nosso tempo, proponho que o debate ético em relação aos direitos humanos seja um guia para as ações das escolas. Evitando assim tratar individualmente o preconceito e a discriminação, ampliando o debate sobre as condições de trabalho e o ensino crítico como pilares do aprender e do ensinar, buscando valorizar o protagonismo das crianças e jovens e retomando princípios mais democráticos e participativos na escola. A diversidade nos constitui como humanas/os e a reflexão ética nos permite pensar sobre que sociedade queremos e que futuro desejamos para nós mesmos e para as futuras gerações. Esta é uma tarefa densamente política. A política está presente em todas as nossas ações, pois toda ação ou omissão tem consequências. Quanto mais coletiva e aberta ao diálogo forem essas ações, maior a chance de encontrarmos um caminho mais justo para nossas vidas.

 

1 – Professor Titular, Departamento de Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Co-coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero.


Imagem de destaque: UNB

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