Qualquer filho(a) é digno(a) de ter oportunidades educacionais

Daniel Machado da Conceição

Nos últimos tempos estamos nos acostumando com grosseria e falta de empatia explícita. Meu orientador, Professor Alexandre Vaz, diz que alguns comentários dos atuais líderes governistas como que dispensam análise sociológica. Não há meias-palavras ou argumentos para analisar, simplesmente, falam aquilo que pensam sem necessidade de interpretação, apenas com compreensão é possível entendê-los.

O Ministro da Economia Paulo Guedes recentemente comentou que uma das políticas públicas de financiamento estudantil pagou a graduação do “filho do porteiro” que tirou zero na prova do vestibular. Que atrocidade é essa afirmação do Ministro! Ela me fez recordar que em 2007 quando a Universidade Federal de Santa Catarina aderiu às políticas de ações afirmativas, no vestibular para ingresso no ano seguinte, eu fui aprovado para a graduação em Ciências Sociais.

Realizar a matrícula não foi simples. Não que tivesse algum problema com minha documentação, mas havia ações judiciais que queriam embargar o processo, pois, segundo a alegação que traziam, as cotas estavam reduzindo as vagas no nível superior. Um argumento muito mesquinho e falho, já que as políticas públicas ampliaram o número de vagas, essas direcionadas para as ações afirmativas, sem impactar nas que já existiam. Durante o imbróglio e as incertezas que eram discutidas e apresentadas pela mídia local, um colunista de um dos principais jornais de Santa Catarina fez um comentário bem estruturado, mas injusto, sobre o assunto.

O jornalista embasou sua observação acionando o mérito e a disparidade das avaliações, atestando ser aquele processo seletivo um absurdo e defendendo que aqueles que o contestavam judicialmente estavam certos. Seus argumentos não convenceram e estimularam minha resposta, enviada por correio eletrônico. Meu primeiro contato foi respondido com brevidade, ele apresentava a mestiçagem como uma questão subjetiva para qualquer definição, voltando a afirmar a importância do mérito pessoal. Alegava, seu autor, inclusive, que no condomínio em que vivia, localizado em uma área nobre da cidade, um dos moradores era médico e negro. Seu comentário foi: “Ele conseguiu sozinho, todos os outros conseguem!” 

O articulista evocava ainda a sua própria experiência escolar, apontando que enquanto ele estudava, seus colegas negros jogavam bola. Além, é claro, de destacar que naquele 2007, atletas negros e outras personalidades tinham grande destaque, como Condoleezza Rice, Secretária de Estado do governo George W. Bush (2005-2009).

Bem, sua resposta não me convenceu e me deixou ainda mais chateado, com a observação final de que seria muito humilhante que, no futuro, eu contasse aos meus filhos que ingressei na Universidade por meio de cotas. Após respirar fundo perante a tela do computador, minha réplica foi categórica e simples: só conhece a verdadeira humilhação quem vive com ela diariamente. A entrada na Universidade pública fora muito comemorada em nossa família, que alegria, oportunidade e sonho. Em nada significava demérito ou qualquer sentimento depreciativo. Aquela troca de mensagens ecoou toda vez que os desafios ou percalços da graduação se apresentavam como barreiras. Enquanto escrevo este texto posso dizer que o sentimento de humilhação não existe, estou aqui honrado e lisonjeado pela oportunidade e pelo itinerário formativo.

Após concluir a graduação, tive a chance de realizar o mestrado, agora estou concluindo o doutorado e com o desejo de compartilhar o conhecimento adquirido. São treze anos aprendendo a dialogar com muitos temas e pensadores, alguns se tornaram mais acessíveis, com outros continuo com boas discussões e até incompreensões, algumas delas em razão do meu handicap, o que significa o alerta de ter que fazer sempre um pouco mais.

Como falei ao jornalista no passado, posso dizer também ao senhor Paulo Guedes que o “filho do caminhoneiro” se solidariza com o “filho do porteiro”, com a “filha da faxineira”, do “pedreiro”, da “costureira”, do “segurança” etc. A grande questão com a qual o Ministro da Economia deveria estar preocupado não diz respeito ao investimento que o governo faz para manter um programa de financiamento estudantil, mas com os postos de trabalho oportunizados aos futuros profissionais graduados. 

Os avanços nas políticas educacionais não podem ser camuflados pela crítica rasa sobre o público que entra na Universidade. Nossa maior preocupação deveria ser qual tipo de profissionais e para qual modelo de sociedade elas e eles têm sido formados. Se nosso esforço estivesse centrado em melhorar os processos, disponibilizar materiais, ampliar estruturas e aperfeiçoar a formação docente nas três esferas educacionais, talvez não estivéssemos obcecados e na fúria persecutória a quem entra. 

Independente da modalidade de ensino, controvérsias existem e fazem parte da dinâmica do processo de aprendizagem. No entanto, posso dizer que o “filho do porteiro” deve ter o direito à oportunidade de entrar na Universidade, pois, sempre sairá dela melhor do que entrou. Na Universidade pública o “filho do caminhoneiro” é apenas mais um entre tantos exemplos. Sendo assim, só posso responder ao Ministro de maneira semelhante ao que disse ao jornalista anos atrás, mas ressignificando um pouco aquele conteúdo com a irônica fala do meu orientador. Só quem vive a realidade do Brasil sabe como as palavras de alguém socialmente privilegiado não precisam de qualquer análise sociológica.

 


Imagem de destaque: Pixnio

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