Psicanálise, Sexualidade e Educação: pontes anticapitalistas

Gabriela de Oliveira Moura e Silva

Em 2018, assistimos à culminância do crescente discurso moralista operado pelos setores de ultradireita que vêm ganhando força na política brasileira. Um dos carros-chefes da campanha eleitoral do atual presidente Jair Bolsonaro foi a condenação da discussão de temas como gênero e sexualidade nas escolas, sob o pretexto de que isso “manipularia” as sexualidades das crianças em uma direção considerada imoral. Esse destino cruel se daria a partir da dita “doutrinação” operada por “educadores comunistas” nas escolas e causaria inevitável aumento de crianças, ou, em breve, adultos/as, com identidades transexuais e orientações sexuais desviantes do dito normal. Tudo isso sob o pretexto da proteção à infância e adolescência, aparentemente descartando a possibilidade de autonomia e pensamento crítico dessa faixa etária, o que é não só um desrespeito, mas um discurso usado de modo a incidir num ataque a seus direitos. A defesa da entidade da família em conjunção com o cissexismo vive um auge em termos de destaque no debate público desde o golpe de 2016. Isso gera o efeito do “pânico moral”, que Gayle Rubin nos relata como estratégia conhecida dos governos de extrema direita e ultraconservadores. Sendo assim, através de invenções esdrúxulas como a “mamadeira de piroca”, entre outras covardias, Bolsonaro conquistou muitos seguidores e eleitores que terminaram por levá-lo à presidência. Atualmente, esse movimento culmina na defesa do homeschooling, que se aproveita da pandemia do novo coronavírus para engrenar seu projeto de desmantelamento do direito à educação. Rubin, historiadora feminista, contribui muito com sua análise histórica de governos – nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo – que usaram a mesma estratégia e disputaram principalmente a escola e a infância para disseminar o ódio anti-esquerda em períodos pré-eleitorais. A autora foca no período do século XIX e é capaz de demonstrar como tal estratégia tem história nas campanhas e políticas de extrema direita ao longo da história.

No início do século XX, Sigmund Freud, enfrentando os desafios de seu contexto, tomou a tarefa de falar e escrever sobre suas descobertas a partir da experiência psicanalítica. Nesses tempos, ele enfrentava forte resistência de seu meio, por exemplo ao sustentar a noção de que há sexualidade na infância. Um dos destinos mais preponderantes das operações psíquicas é, segundo Freud, a defesa contra nossos próprios impulsos sexuais, o que ele atesta ser importante para a manutenção da civilização. Ao mesmo tempo, o médico dedicou-se a denunciar, em diversos pontos de sua obra, as consequências da repressão excessiva da sexualidade para essa mesma civilização. Freud chegou a escrever sobre a importância da educação sexual nas escolas e criticou veementemente a influência da religião na instituição escolar. 

A Igreja – que se tornou importante instrumento do capitalismo desde a criação da propriedade privada – historicamente foi a principal precursora do controle das práticas sexuais na sociedade, segundo a análise da historiadora Silvia Federici. A escola acabou se firmando como um dos instrumentos mais eficazes para exercer tal vigilância. Por outro lado, a escola como instituição que pode oferecer algo fora da vida doméstica e da instituição familiar, como promover trocas entre estudantes, torna-se terreno potente para impulsionar uma educação crítica, que provoque os sujeitos a se enxergarem em sua cena social, seja como oprimidos e/ou opressores, e vislumbrar elaborações sobre seu papel na sociedade. O cotidiano escolar tem colocado problemas que confirmam a presença de demanda para esse tipo de trabalho por parte de docentes e discentes. É possível considerar esse trabalho a partir de algumas premissas psicanalíticas há muito colocadas, como a existência da sexualidade infantil e que o sujeito não ocupa nunca uma posição absolutamente passiva, mas que a passividade o constitui dialeticamente em sua estrutura com o caráter ativo. 

Partir dessas e outras premissas tão caras à teoria psicanalítica reposiciona o problema da abordagem do tema da sexualidade e gênero na escola, assim como raça e classe, bem como outros que envolvam problemáticas de opressões estruturais. Não se trata apenas de ensinar, informar e instruir as crianças e adolescentes a respeito do sexo e do gênero, mas assumir que elas próprias vivem e experimentam essas questões; possuem desejos, fantasias e ideias a seu respeito. Afirmo, então, consonância disso com o que se dá no chão de escola e a importância de abrir o espaço para o surgimento e abordagem dessas questões.

Uma das apostas que Freud faz para combater os mal-estares da civilização capitalista é na educação das novas gerações. Faço eco a essa aposta, como também na disputa da educação em seus espaços formais e não-formais para a criação de sujeitos críticos e implicados em seus contextos.

 

1 – Psicóloga formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Membro do DEGENERA – Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gênero. 

 

Para saber mais
Gayle Rubin, “Pensando o Sexo” 

Sigmund Freud, “O Mal-estar Estar na Civilização” e “Futuro de uma Ilusão” 

Silvia Federici, “O calibã e a bruxa” 


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