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Cássio Bruno de Araujo Rocha

“O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do “discurso”.

FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. Conversa entre Michel Foucault e Giles Deleuze. In: Microfísica do poder, p. 71.

 

Diante do massacre ocorrido na madrugada do domingo, dia 12 de junho, na boate LGBT Pulse na cidade de Orlando nos Estados Unidos, me vi, como professor de História e historiador, frente à questão não resolvida do lugar do intelectual em relação ao Poder. Em meio ao choque e à tristeza pelas vidas mais uma vez estupidamente perdidas de pessoas LGBT’s, qual posição o intelectual pode, ou deve, tomar? Como levar as reflexões da Academia para além dela própria? Como refletir sobre o horror do assassinato, da homofobia, do machismo, do terror? E, mais além, sendo eu próprio um homem gay cuja ocupação é o ensino e a pesquisa histórica, me senti impulsionado a marcar uma posição. Qual?

No domingo, minha primeira reação foi chorar. Chorar pelas vítimas. Chorar pela minha identificação com elas. Eu sou elas. Meus amigos e minhas amigas são elas. Como elas, nossas vidas continuam em risco. Apesar dos avanços, continuamos corpos precários. Continuamos apenas quase humanos. A partir da tristeza e do luto (que não terminam), porém, comecei a refletir.

Em minhas pesquisas, tenho claro como pessoas que, de alguma maneira, rejeitam a coerência da matriz sexo-gênero-desejo temos sido, historicamente, constituídas como corpos abjetos. Ter a subjetividade construída pelos dispositivos disciplinares e de biopoder como abjeta, significa que somosjogadas para o (não) espaço do Outro da cultura, somos o negativo que a heterossexualidade necessita para se manter como norma não-dita. O normal é ser heterossexual. Quem disto desviamos pode (deve?) pagar o preço. Historicamente, o preço tem sido a criminalização, a patologização, o ostracismo, o assassinato.

A posição de abjeto das pessoas LGBT na cultura Ocidental nos constrói como corpos precários. A violência do massacre nos lembra como são frágeis também as nossas conquistas. Tal precariedade, tal fragilidade vêm do fato de que, afinal, nós, LGBT’s, não somos tão humanos quanto os heterossexuais. Nem todas as vidas são humanas. Não sendo humanas, é fácil destruí-las. Não sendo humanas, é fácil esquecê-las. Não sendo humanas, é fácil silenciá-las.

No Brasil, não estamos distantes do massacre na boate LGBT de Orlando. Segundo os dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2015, 318 pessoas LGBTfomos mortas (ver https://homofobiamata.wordpress.com/) Foram mais de seis massacres de Orlando ao longo do ano. Um ano típico, segundo os dados anuais do mesmo grupo. Desde domingo dia 12, os crimes continuaram no Brasil. Em Belo Horizonte, uma travesti foi assassinada na Avenida Afonso Pena. Na cidade de Santaluz (BA), um casal gay de professores foi morto ao ser amarrado, preso no porta-malas e ter o carro incendiado. É preciso chorar, rezar e lutar por Orlando, mas também, e ainda mais, pelas vítimas brasileiras.

Por quê perseguir com tal virulência nós homossexuais? Por quê tal sanha em destruir a nós LGBT’s? Qual o custo político de tamanha violência? A força da resposta dos movimentos sociais LGBT ao massacre demonstra que o custo é alto. No contexto dos Estados Unidos, parece até mesmo que a atenção do movimento se voltou para o problema do porte livre de armas naquele país. Vê-se, então, que o custo da violência exacerbada é elevado. Assim, tal forma de perseguição não é estrategicamente útil aos dispositivos de poder. Mais eficazes são as táticas cotidianas e silenciosas, que não chamam atenção e atingem os mesmos efeitos. Mais eficaz é a cultura homofóbica brasileira de matar uma pessoa LGBT a cada 27 horas. Agindo assim, a violência é naturalizada, queda invisível. Não há forte reação. Lembremos, o poder é tão mais eficaz, quanto mais insidioso e dissimulado, quanto mais produtivo, quando a repressão está em segundo plano.

Reação, porém, há sempre de ocorrer. Como escreveu o dramaturgo gay estadunidense Anthony Robert “Tony” Kushner em sua premiada peça Angels in America, nós não morreremos mais mortes secretas. Para além do imprescindível movimento social, nossa melhor resistência é existir. Existir em nossos termos, não nos deles, da heterossexualidade. Como intelectual, penso ser este o papel que me cabe, precisar como, historicamente, a cultura gay – hoje, a cultura LGBT – tem sido o berço de novas formas – mais éticas e estilizadas – de existência. É também contra isso que age o regime de poder da (hetero)sexualidade. Nós, pessoas LGBT, enriquecemos a cultura com nossos modos de vida, que vão muito além dos laços pobres do casamento e do parentesco. Nós ensinamos ao Ocidente novas formas de estar com o Outro no Mundo. Por sermos expulsos de nossas famílias, aprendemos e ensinamos a cultivar uma nova amizade, uma nova comunidade – com prazeres mais intensos e subversivos.

Esta é nossa existência. Está é nossa resistência.

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