Por uma EJA prisional cruzada no dendê de Nkosi Mavambo

Pedro Henrique Silva*

Ko makui, Mbanda Njila a todos e todas que aqui estão, aos que aqui estiveram e aos que virão. Que aquele que é não só senhor das guerras, mas também dos caminhos e suas encruzilhadas nos permita versar conduzindo nossa fala como o facão amolado abrindo trilhas na mata. Não enxergamos outro modo de iniciar este texto que não seja com um pedido de bênção e licença para riscar o nosso ponto neste terreiro dedicado a pensar a Educação de Jovens e Adultos.

Terreiro sim! Pois, para nós, este existe como espaço praticado, contestado e disputado, mas também como um lugar de acolhimento, reconhecimento e reexistência. Sendo assim, não se limita a um local fixo, sendo terreiro a encruzilhada em que se cospe o marafo (cachaça) para Exu, a praia em que se joga flores para Iemanjá, ou mesmo o bar em que se toca o samba responsável por encantar os corpos dançantes ao som de canções que devem sua origem aos toques sagrados dos candomblés.

Seguindo esta toada, pensamos que qualquer espaço, físico ou não, em que os saberes de outras ordens, sejam do povo negro, indígena ou cigano, emergem frente ao rigor do pensamento colonial são, portanto, terreiros. Sendo assim, mais uma vez firmamos o ponto: este espaço é um terreiro da EJA!

Ao pensar a Educação a partir dos saberes tradicionais buscamos marcar a oposição ao projeto colonial de morte que foi desenvolvido nas bandas de cá do Atlântico. Projeto este marcado pelo desencante da vida, como também pela manutenção da violência, seja epistêmica ou física, sobre os corpos colonizados, deslegitimando as suas formas de pensar o mundo, bem como criminalizando suas práticas culturais e seus territórios.

É pensando a violência deste projeto que nos colocamos contrários a todo o sistema penal ocidental, pois questionamos a pretensa neutralidade deste, bem como sabemos que tal sistema vai atuar seletivamente sobre os corpos negros e periféricos. Não é por acaso, por exemplo, que segundo os dados oficiais do levantamento nacional de informações penitenciárias (Infopen, 2017) 64% das pessoas em situação de privação de liberdade são negras, número que julgamos maior, dado as lacunas do levantamento apresentado.

Assim sendo, o educador que vai lecionar em espaços de situação de privação de liberdade necessita adotar uma postura crítica-desconfiada deste ambiente. De maneira a superar a lógica binária nós” e eles”, os homens de be(ns)m” educando os homens maus” sendo educados.

É necessário, pois, adotar uma postura que exige tanto a luta, quanto a finta, o drible, tendo isto em mente buscamos no Nkise (divindade dos candomblés banto, semelhante aos orixás) Nkosi Mavambo uma possibilidade conceitual/metafórica/poética para pensarmos a educação em espaços de situação de privação de liberdade. Seu nguzo (força) é o da guerra, da expansão como Nkosi (nkise guerreiro) e o da palavra, do movimento como Mavambo (nkise dos caminhos, encruzilhadas). Nkosi Mavambo é, para o povo banto, o nkise que rege os domínios da educação, é, conforme registra um dos cantos religiosos, aquele que abre caminho com o seu abraço (Tabula Nkandandu), com isso nos ensinando outros modos de reexistir e, por que não, de fazer guerra.

Para nós, uma educação centrada nessa energia é aquela que não separa a razão da emoção, o afeto do conhecimento, o corpo da mente, o riso da seriedade. É uma educação amarrada com o pensamento preto (Mandinga de preto-velho), é uma educação voltada para a reexistência, pluriversalidade, pluriracionalidade, prenhe de liberdade!

Por fim, é sobre o ngunzo de Nkosi Mavambo que cantamos o ponto de que é necessário transformar as salas de aula das prisões em terreiros. É necessário fazer emergir os saberes de outras ordens, superando, assim, a lógica colonizadora que dita o ensino nestes ambientes. Nesse sentido, o espaço do presídio nos oferece uma potente metáfora para pensar tal movimento de driblar a opressão, qual seja, é no cochilo do guarda que se constrói, nas frestas da capa (porta de grades da cela), nos buracos da ventana (janela também de grades localizada ao fundo da cela), as táticas de re-existência.

Desse modo, enxergamos que, nos cochilos” do opressor, surge das frestas das grades do projeto educacional colonial a Educação cruzada no dendê de Nkosi Mavambo, qual seja uma prática fundamentada nos saberes anti-hegemônicos que trazem, por exemplo, para o catolicismo as mandingas, as mirongas da religiosidade de matriz africana, ou mesmo, se apropriam de modos da poética ocidental para recriá-los, reelaborá-los nas poéticas rap, poéticas samba, poéticas funk, poéticas do feitiço (presentes nos cantos e nas narrativas dos candomblés, umbandas, omolokôs…).

*Professor da rede pública de ensino, atuando com Educação de Jovens e Adultos (EJA) em contexto de privação de liberdade. É mestre em Educação e Docência, pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), bem como graduado em Letras/Licenciatura em Língua Portuguesa. É, também, iniciado nas tradições do candomblé de Angola na comunidade-terreiro Casa de Cultura Lodé Apará.


Imagem de destaque: Aulão preparatório para o Enem na Penitenciária Lemos Brito. 07 de novembro de 2015. Foto: Carol Garcia/ GOVBA

 

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