“Perdi a cabeça por amor”: a violência pela honra ou novas roupagens para velhos temas

Evelyn de Almeida Orlando

Recentemente, presenciamos um episódio de violência física em plena cerimônia do Oscar de 2022, transmitido em cadeia internacional, o qual virou tema de muitas conversas que se arrastaram por dias nos diferentes grupos dos quais participo. O que mais me chamou a atenção foi a justificativa de homens, e sobretudo de mulheres, inclusive de mulheres que se afirmam feministas, em defesa de Will Smith e da sua motivação: supostamente a defesa de Jada Pinkett, sua esposa, que tinha sido alvo de uma piada de Chris Rock. 

O teor da piada que, embora estivesse baseado no visual de Jada, em função de uma doença que vem enfrentando, fazia alusão a um personagem desempenhado por Demi Moore, no filme Até o Limite da Honra (G.I. Jane, no original), de 1997. O personagem se tratava de um soldado, uma mulher forte, combatente e destemida. Uma mulher com o perfil de tantas mulheres que lutam por sua própria vida e daqueles que estão ao seu lado, lutam por seus ideais, pela liberdade e por seu país. A analogia me pareceu longe de ser depreciativa, embora fazer piada a partir do visual de qualquer pessoa seja uma forma inequívoca de violência simbólica. 

Essa discussão vai longe e rende muito debate, mas escolhi conduzir minha reflexão pela naturalização da violência, sobretudo quando é “feita por amor”. Parece que, em nome do amor e da honra, vale tudo. Assim como em nome de Deus. O problema é que essas balizas sagradas têm sido motivo para violar e matar ao longo da história. Elas modelam uma cultura que educa gerações por meio de práticas violentas que se justificam em elevados valores morais.

Se queria defender a honra de sua esposa, a quem considerou atacada, Will Smith poderia ter recorrido a inúmeros meios legais, pacíficos e dado exemplo de como podemos responder à violência sem violência; poderia mostrar a todas as pessoas que sofrem bullying e assédio os canais possíveis de resposta; mas poderia, sobretudo, deixar que Jada se defendesse. Afinal, ela está longe de ser uma princesa indefesa, presa na torre de marfim, esperando pelo príncipe encantado que irá salvá-la. Ele violou de sua própria esposa o direito de escolher como se manifestar em relação a algo que dizia respeito a ela própria.

Não, não foi uma atitude por amor. Não foi pensando em Jada que Will Smith deu um soco em Chris Rock na cerimônia do Oscar. Foi uma exibição para o mundo de como ele, enquanto macho, não leva desaforo para casa. Não foi o marido amoroso que se preocupou com sua mulher e deu uma lição em seu agressor, repaginando em uma versão moderna, os crimes de honra de um passado ainda tão presente. Foi o homem, produto dessa cultura violenta a qual todos nós somos herdeiros, que mostrou publicamente o quanto ela está introjetada em nós. 

As reações – mais do que esperadas, confesso -, pró Will Smith também nos mostraram o quanto nossas práticas estão muito longe de nossos discursos. A defesa de Will Smith por tantas mulheres de diferentes idades contribui para recriar a imagem da princesa indefesa e frágil que precisa de um príncipe salvador. Jada não precisava disso. Nós, mulheres, não precisamos disso. O que precisamos é de reconhecimento como sujeitos e, como tal, direito à nossa soberania. 

Isso me lembra um conto popular bretão baseado na lenda do rei Artur.  Conta a história que enquanto o rei caçava na floresta, foi feito prisioneiro de um homem que queria se vingar dele por ter perdido seu patrimônio. Como estava indefeso, o homem decidiu dar-lhe uma oportunidade e o deixou ir, desde que no ano seguinte retornasse com a resposta à seguinte pergunta: o que as mulheres amam acima de tudo?    

Durante esse tempo, Artur coletou muitas respostas, mas quando voltou para encontrar o homem que o aprisionou, foi interpelado por uma mulher medonha que lhe assegurou que nenhuma das respostas que ele tinha era boa o suficiente. Em contrapartida, ofereceu-lhe a boa resposta se, em troca, ele se casasse com ela. O rei aceitou, na esperança de que algo acontecesse e ele se livrasse desse combinado. Ela então lhe disse: O que as mulheres amam acima de tudo é a Soberania. 

Artur encontrou o homem que o aprisionou e apresentou, primeiro, as várias respostas que coletou em seu caminho. O homem não aceitou nenhuma. Por fim, ele respondeu: é a Soberania. O homem enraivecido soube na hora que Artur havia sido instruído por sua irmã, mas o deixou ir porque havia cumprido o combinado. 

O rei, por sua vez, honrou seu trato e casou-se com aquela mulher repugnante que lhe deu a resposta que o libertou de seu inimigo. Depois do casamento, na noite de núpcias, Artur deitou-se ao seu lado e lhe virou as costas. A mulher pediu-lhe que lhe desse ao menos um beijo, por cortesia. Ele, então, virou-se para ela e viu a mais bela mulher que ele já tinha encontrado em sua vida. A mulher, então, lhe disse: Você pode escolher entre me ter bela de dia e horrenda de noite ou ao contrário. O rei achou a escolha muito difícil e deixou que ela mesma decidisse o que preferia. Ao que ela, prontamente, lhe respondeu: Serei bela para você noite e dia. E explicou que, por magia, sua madrasta a havia transformado naquela forma repugnante e que ela só retornaria a sua forma normal se o rei mais poderoso do mundo se casasse com ela e lhe concedesse Soberania em tudo.     

O episódio do Oscar nos mostra como estamos distantes dessa experiência e como velhos temas ainda se mantém com força entre nós, homens e mulheres, o quanto precisamos desconstruir práticas de violência e estereótipos sociais de gênero ao invés de naturalizá-los e reproduzi-los. Se alguma coisa boa saiu desse episódio foi a possibilidade que a mídia nos proporcionou de refletir, debater e repensar esse ciclo naturalizado de violência. Um pequeno passo para criar novas balizas morais para as gerações futuras.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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