Onde está o “X” da/na questão?

Fernando Pocahy

A língua é minha pátria

E eu não tenho pátria, tenho mátria

E quero frátria

(Caetano Veloso)

 

Mais notícias de um país entristecido: a língua foi sumariamente cancelada nos últimos dias de outubro – mês que celebramos a literatura e a docência, dentre outras bonitezas da/na cultura. Mas, bem no dia 29, Dia Nacional do Livro, foi publicada uma portaria ministerial, proibindo usar “x” e outras variações da linguagem neutra ou inclusiva em projetos submetidos à Lei Rouanet. A justificativa: “submeter a língua a um processo artificial de modificação ideológica é um crime cultural de primeira grandeza”.  Nada mais ideológico do que proibir a língua de se expressar. Onde está o X da/na questão? 

A cultura (especificamente neste caso, as políticas públicas de cultura) está minguando pela negação do que lhe é próprio: pulsar, diferir. E, nós, por aqui, lançando hipóteses, argumentos e até mesmo conceitos para todos os lados, afiando a língua. O alvo é certo, mas a nossa palavraria (não artilharia) não o atinge.  Não há X da questão que dê conta de tantos descalabros. Mas a língua empurra, a vida pede passagem e, aos solavancos, estamos nos pronunciando: menos polemização, mais problematização, jogamos mais um X aqui, outra questão ali.

Para nosso desgosto eterno isso tudo entrará para os anais da história brasileira, mas junto a isso todos os X nas questões que pusemos. Isto se houver ciência até lá, bem evidentemente, pois, para o atual governo federal, não parece crime científico de “primeira grandeza” reduzir o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia – apenas para tocar em uma das pontas da política pública que nos toca mais diretamente, mas o elenco da devastação é inumerável, transbordando pelas redes sociais via zap-zap, no face ou no insta… (ué, que palavras são essas, estão mexendo com a língua?) 

Letra morta é a miséria do linguajar-vida do presidente: o indivíduo precisa destruir tudo para experimentar alguma distinção – senhores diante do nada. Secar a fonte da vida (destruir a Amazônia, as culturas ribeirinha, quilombola, dissidente sexual, a pluralidade religiosa, xs idosxs pobres, e por aí vai) – estado suicida (basta lembrar da carta de Hitler a seus compatriotas, sugerindo a autodestruição da nação, caso perdessem a guerra, como conta Michel Foucault nas últimas páginas de Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 

E o coitadinho do X e ou seus congêneres? Até que vinham dando conta do recado de alguns dos problemas de gênero – ou da linguagem e da produção de gênero – questões de sociedade, problemas de desigualdade. Se a sinalização/marcação é inclusiva, se funciona ou não no app para pessoas com baixa visão ou cegas, por aí vai… Isso tudo já foi/ainda é motivo de disputa intelectual e/ou ativista. Afinal, o poder é produtivo, a língua segue em disputa, ela é vibrátil… Problemas de gênero, problemas nos estudos de gênero, problemas de/em uma sociedade. 

Eu mesmo me segurei por aí e até elaborei uma notinha de rodapé para explicar o porquê faço uso do X em alguns textos: fui de Stuart Hall (no texto Quem precisa da Identidade, publicado no livro Identidade e diferença, organizado por Tomaz Tadeu da Silva), buscando com o X informar um sinal de rasura e “cancelamento” (vejam só a polissemia política do termo) –, forma de marcar palavras e conceitos que não seriam mais bons para pensar. Faço uso do sinal “x” (geralmente grafado em itálico – essas duas linhas cruzadas) como forma de colocar sob rasura noções consagradas e inflexões binárias de gênero, acompanhando a aposta de que certos conceitos e expressões não seriam ou serviriam para pensar, ao menos em sua forma não reconstruída (como disse Hall). 

Sabemos que aplicativos de leitura para não videntes sugerem erro de leitura com o X, e nisso há um problema. Mas também um importante analisador: os aplicativos operam por engendramento a lógicas binárias e não conseguem mediar nossos problemas com a/na diferença, especialmente ao sinalizar os limites das máquinas – feitas por humanos, diga-se de passagem. 

Mais do que fazer caber múltiplos gêneros ou posições de sexualidade através de sinais, como o próprio x ou @, *, #, _, ´e´ etc, tento com essa rasura linguística evidenciar que a gramática é uma marcação da diferença. Não se trata de uma forma meramente inclusiva o uso do X ou similares, embora guarde essa potencialidade; mas, justamente, marcar que a linguagem não somente não é neutra como está vivamente envolvida na produção, marcação e no governo da diferença, no auto/governo dos indivíduos. 

A linguagem em questão é das lutas: a língua é (da) vida e infinita é a sua lida. Ao encontro de Conceição Evaristo foi que melhor arranjei uma resposta à questão da censura ao uso das ditas impertinências do uso de linguagem neutra ou inclusiva, ao mal-estar que sentem com a língua-viva, com o diferir, com a liberdade: “De línguas e seus usos também se constrói autonomia, identidade, combate-se preconceito e reafirma-se que diferenças são potências que precisamos observar e contemplar na seara da luta por justiça. Nomear é poder”. 

1 – Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/ Programa de Pós-Graduação em Educação e Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Coordenador do geni – estudos de gênero e sexualidade. 


Imagem de destaque: Heitor Novaes

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