Olhos de aguar

Ivane Perotti

_ Professora, o que é um crepusclo?

_ Um crepúsculo é…

_ Eu sei! Eu sei! É um filme. Aquele das raposas.

_ Não são raposas. São zumbirs.

_ Não! Eles se beijam…hummm…hummm.

_ Zumbirs não beijam! Não beijam! Meu primo contou.

O cheiro da segunda-feira entrava no caldeirão das propostas. Buscara a trempe e ganhara uma cozinha mineira. Trabalhava no interior de Minas Gerais, escola pública. Recém-saída da graduação, assumira uma turma multisseriada. Motivada, mas insegura, fechava-me em febres. Chorava diante dos planos de aula. Do tempo. Das estratégias. O desafio calçara-me botas de ferro. Asas pedagógicas não se abriam. Sofria a seca das intenções. Sofria de planejamentos.

Transladara-me para a zona rural. Difícil acesso. De um apartamento na capital para um quarto em casa de família. A região vivia da agricultura. Ali, não se trocava número de celular. Trocavam-se brotos. Pães de vários grãos. Feijão da safra. Sementes. Fazia-se da troca a moeda de troca. A escola atendia dezessete crianças, do primeiro ao terceiro ano. Perdi peso e cabelos. Estranhei o pequeno espaço da “sala de aula-escola”. Os territórios alternavam-se em mim. A infância tornou-se um deles, como um ninho movediço. Fiz pesadelos. Na constância da vida e das percepções, alterava ambas. Foi no caminho para a escola, cedo no dia, entre a plantação de café e de milho, que a conversa das crianças deu linha às aulas de literatura. As crianças narram, por natureza e sobrevivência. Se, ao chegarem à escola deixam de narrar, a escola precisa ser revista. Foi a cena prima de minha iniciação. As crianças das conversas alegres eram as mesmas que, ao sentarem-se na sala semiaberta, calavam-se. A voz de silêncio não era a minha. Voz dos lugares marcados, herdados, construídos no medo e na ignorância. Disponíveis para aprender, sim. Emblematicamente caladas, não! O alerta acendeu-se em pólvora. O rastilho fez-se aos trancos. Eu não sabia propor, as crianças não reconheciam a proposta. Foi o olhar de Ana que desamarrou os nós da linha tensa. Olhos de aguar. Penetravam por debaixo de meus cabelos. Falava pouco. A família passava apertos. Disso eu entendia. Então, sem recursos senão o desejo de alçar a literatura com mãos de pá, iniciei uma rotina. Contava uma história todas as manhãs. Não tínhamos biblioteca. Livros, só os didáticos. Viajei à capital para buscar entre amigos e parentes os primeiros livros de literatura infantil e juvenil da escola. Transladada, eu sobrevivia de sobressaltos pedagógicos e arroubos literários. Mas os olhos de aguar ampliavam rotas. De alguns clássicos aos mais populares, esgotei todos os que arrecadara. O cinema não chegava. Duas televisões na região serviam para o noticiário da noite. Cansados do trabalho, dormiam cedo. Acordavam cedo. Recebiam alguns jornais do religioso que aparecia uma vez ao mês. O resto acontecia.

Quando os olhos daquela menina se abriram diante dos livros, acordei. Pude viver o momento. Ela estava no terceiro ano escolar. No início, tímida. Na sequência, voraz. Até o dia em que pediu que a visitasse e levasse alguns livros para a mãe ver. Não foi um convite. Foi um pedido. Não tardei. Parti de carona em carro de boi, chacoalhando o fígado e os livros. Era longe. Cheguei quando separavam o pasto. Levada ao paiol, fui apresentada por Ana à família. Sem demora, a criança apontou um banquinho de lenha.

_ Agora lê bem alto, professora. Começa por esse.

Diante de Robinson Crusoé, de capa dura e gasta, obedeci. O avô arrastou o balaio de milho para mais perto, a mãe que amamentava o bebê chamou os dois filhos do meio, o pai, visivelmente feliz, desligou a bomba de puxar água. Um vizinho foi chegando e o carroceiro, arrumou bancada. Li. Na boca do irmãozinho de Ana o leite preenchia curvas. Eu ouvia o milho descer o balaio e indicar o fundo que subia. Ana era só olhar. Todos ouviam.

Os olhos de aguar receberam as primeiras estrelas da noite. Acenderam lamparina na despedida da tarde. Uma lamparina perto da mãe. Outra perto do livro. O avô descansava o milho. Quando terminei aquela versão, fui servida com leite novo e batatas assadas. Emprestei para a família os livros que levara. Ana faria as vezes da leitura coletiva. Era a única a conhecer as letras nos livros, acrescentara a mãe, agradecendo a visita.

Ganhei um abraço, outras batatas, um pão de milho, um litro de leite e parti. No caminho de volta, a terra solta jogou amarelinhas. Pensei no anúncio de minha aluna ao abraçar-me e entregar ovos recém-recolhidos:

_ Professora, eu gosto de poesia. O que é um filme crepusclo?


Imagem de destaque: Escola Eduardo Galeano, quilombo Campo Grande, Campo do Meio – MG. Fonte: MST.

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