O que está em julgamento no filme Os 7 de Chicago ?

Evelyn de Almeida Orlando

Qual a relevância de produções como Os 7 de Chicago, lançado em 2020 pela Netflix, esta para a educação? Quando falamos do potencial educativo do cinema, falamos de uma educação do olhar, de despertar outras sensibilidades que vêm acompanhadas de outras perguntas, as quais permitem uma compreensão mais ampliada sobre problemáticas que vêm à luz apresentadas por outra linguagem e outra estética.

Se o cinema serve para entreter, serve também para educar. Esse parece ser um ponto de consenso entre educadores, governos e líderes religiosos. Não fosse assim, não haveria tanto investimento em censura (embora, em regimes autoritários, esse nome não seja utilizado). Em contrapartida, fala-se do bom cinema, da boa literatura, da boa imprensa, mas pouco se questiona quem determina o que significa “bom”. Bom para quem, bom para que? São apenas “recomendações– para não utilizar o termo censura de maneira explícita -, travestidas de uma roupagem democrática, que orientam o pensamento das pessoas, freando algumas ideias, incutindo outras.

O filme Os 7 de Chicago se apresenta com uma interessante potência educativa, por colocar em evidência questões como a parcialidade e o teatro da justiça, o racismo estrutural, o sistema que conduz a sociedade para um determinado lugar e a punição reservada, de forma modelar, a todo aquele que não se encaixa no padrão.

Julgamentos são políticos. Não só cíveis ou criminais. É curioso como esse é o tema central da trama e leva tempo para ser assimilado pelo próprio advogado de defesa. Por quê? Porque somos formatados para acreditar no sistema, para acreditar na forma como ele se estrutura e na forma como ele se autorrepresenta. O advogado custa a entender que o julgamento é político, que os réus são escolhidos, que não há nada de justo no processo. A história se passa em 1968, mas não acontece ainda todos os dias?

Para manter a ordem, julgam-se ideias e punem-se os seus representantes. Em seu depoimento no julgamento, Abbie Hoffman afirma ser a primeira vez em que é julgado por seus pensamentos, valendo-se da ironia para lançar luz sobre o real motivo do julgamento. Todo o grupo está sendo julgado por contestar o sistema e a ordem instituída. A condenação, inevitável, seria um freio regulador e serviria de exemplo a seus seguidores. Mas não é exatamente por nossas ideias contrárias às normas que somos sempre julgados e condenados? O fato de serem normas não significa que sejam boas ou justas para todos(as). Não significa nem mesmo que valham para todos da mesma forma.

De muitos modos, as instituições tentam, como uma forma de controle, coercitivamente, educar o pensar, buscando conformar nosso modo de ser e estar no mundo, ajustando-o às normas sociais. Qualquer desvio do padrão instituído é considerado transgressão, e é por esse crime que os desviantes são julgados.

Mas, se esse crime for cometido por uma pessoa negra, os efeitos são ainda mais brutais. Na ocasião do julgamento de Os 7 de Chicago, Bob Seale, único réu negro no tribunal, foi violentado de muitos modos pelo juiz Julius Hoffman, enquanto o mundo assistia, a tal ponto de o promotor e os advogados intervirem sugerindo a suspensão do julgamento do referido réu, devido à condução inapropriada do juiz, marcadamente racista e violenta.

A reação do juiz, muito atenuada no filme em relação aos acontecimentos reais, indignado diante da acusação de racismo por parte dos demais advogados, faz refletir sobre as conexões diretas entre racismo cultural e racismo estrutural e em como ambos se retroalimentam. É preciso reconhecer a cultura racista em que estamos inseridos, como ela rebate em todo o sistema e como este a reforça com suas práticas. Posturas muito mais desafiadoras ao magistrado foram tidas por Abbie Hoffman e Jerry Rubin, dois réus brancos, que não receberam do juiz, nem de longe, o mesmo tratamento que Bob. Por que o juiz não amarrou e amordaçou dois homens brancos em meio ao tribunal, por mais desacato que tenham cometido?

Perguntas simples como essa podem ser feitas quando estamos diante de casos como o que aconteceu no último dia 19 de novembro, no estacionamento do Carrefour, em Porto Alegre, quando seguranças arrastaram para o estacionamento João Alberto Silveira Freitas, que havia ido ao supermercado com sua esposa para fazer compras, e o espancaram até a morte diante dela e com a conivência de outros funcionários do estabelecimento. Se paira ainda alguma dúvida no ar sobre ser este um crime de racismo ou não, poderíamos nos perguntar: se ele fosse branco, teria sido tratado da mesma maneira? Essa é uma questão simples, que todos nós podemos e devemos nos colocar, se quisermos melhor compreender a violenta desigualdade étnico-racial na qual estamos imersos.

Ousar pensar e existir fora da fôrma e lutar por esse direito são crimes passíveis de julgamento e condenação no filme; a violência, em suas várias formas, se apresenta de forma brutal, para instaurar uma suposta ordem e tem pesos diferentes. Lamentavelmente, essa não é apenas uma história de ficção que se passou apenas em 1968.


Imagem de destaque: Divulgação / Netflix

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *