O país do estupro culposo e a objetificação do corpo da mulher

Renata Duarte Simões

Em 03 de novembro de 2020, dormirmos com o gosto amargo na boca de mais um golpe violento contra as mulheres, desferido perversamente pelo judiciário brasileiro, ao inocentar um estuprador alegando estupro culposo” em um caso de estupro de vulnerável, em que a vítima foi drogada, conduzida ao local de estupro e violentada por um homem branco e filho de empresário.

No Brasil, a cada dois minutos, uma mulher sofre violência física e, a cada 8 minutos, ocorre um estupro. Ainda que os dados sejam alarmantes, a justiça brasileira – racista, classista e patriarcal – mais uma vez mostra a sua face tendenciosa e seletiva, criando justificativas para crimes cometidos por homens brancos e ricos, ainda que inúmeras provas atestem contra o indivíduo. Algo que parecia tão violento e avassalador é justificado como ato praticado sem intencionalidade, banalizando um crime bárbaro cometido por milênios e que deixa marcas profundas nas mulheres por toda a vida.

O resultado do processo, que criou uma onda de revolta nas redes sociais, é o retrato da objetificação da mulher na sociedade, que enxerga o corpo feminino como lugar do prazer, à disposição do homem para uso e satisfação de desejos pessoais. Ainda que a mulher tenha conquistado espaço no mercado de trabalho, que tenha demonstrado competência nas funções que exerce, as desigualdades entre homens e mulheres persistem, revelando-se na disparidade salarial, no acesso à esfera pública e política, no modo como a sociedade enxerga os corpos, etc.

A cultura patriarcal refere-se ao comportamento esperado por homens e mulheres na sociedade, em que prevaleceu, por longo tempo, a imagem do homem provedor e da mulher como dependente dele. O contrato tácito” previa que as mulheres, sendo sustentadas pelos maridos, os satisfizessem sexualmente, cuidassem do lar e dos filhos em prol do bem-estar da família, o que gerou consequências desastrosas na vida de muitas mulheres.

A objetificação do corpo da mulher – compreendida como transformação do sujeito em objeto, com a anulação do emocional e psicológico – tem várias consequências danosas, como a estereotipação do corpo da mulher, com estabelecimento de padrões estéticos irreais e a hostilização de corpos considerados fora do padrão; a auto-objetificação feminina, que gera sofrimento e prejuízos à autoestima e à socialização; violência doméstica, praticada pelos maridos e companheiros dentro do próprio lar; violência sexual contra mulheres, em diferentes faixas etárias.

Os movimentos feministas entendem essa objetificação como uma das raízes dos problemas de violência contra a mulher, buscando combater a imagem da pessoa desprovida de desejos, de emoções, de anseios, relacionada somente à aparência física. A banalização da imagem feminina tem sido amplamente debatida, assim como a hipersexualização, no sentido de problematizar e combater a desvalorização da mulher, conscientizando os indivíduos desde a infância.

Contudo, os avanços parecem ainda muito incipientes quando nos deparamos com situações em que a mulher é culpabilizada pela violência cometida contra ela, como se usar uma roupa decotada e curta, fazer foto de biquíni, a tornassem responsável pelo ato violento cometido por outro. Tudo isso parece ainda mais grave quando respaldado pela Justiça, que deveria assumir o papel de instância de proteção da vítima. Corporificado em advogados e juízes, o patriarcado parece se contorcer para caber no século XXI, reinventando a sua lógica e os seus modos de operar.

Protestos estão sendo organizados em todo o Brasil por grupos de mulheres. Com a voz embargada, a dor pela injustiça, a carne ferida, seguiremos lutando porque foi assim que conquistamos o espaço público. Não somos as recatadas” e não voltaremos ao lar. Não nos resumiremos mais à cozinha e aos cuidados com a prole. A luta é por igualdade e respeito aos corpos femininos, amplamente agredidos pela sentença de absolvição, com base no argumento de estupro culposo”.

Este artigo foi escrito no último momento, como grito de dor de uma mulher profundamente indignada por tamanha violência, cidadã de um país que se diz democrático, mas que caminha, a passos largos, no sentido do retrocesso, da opressão, do silenciamento.


Imagem de destaque: Pascal Bernardon / Unsplash

 

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