O fazedor de santos

Ivane Perotti

Não era difícil encontrá-las. Descartadas naturalmente, adormeciam no embalo da terra. À mão armada, tombavam. Árvores e homens. Quase no mesmo lugar. Açoites panejados. Ações em descontrole. Derrame de seiva e sangue. Cada qual a seu preço. Ditame. Queda no tempo da sorte. Sem freio, a morte. Entre árvores, especialmente. Inaudíveis S.O.S. à borda do horizonte. Abate de florestas engrupindo escuridão. Devastação. Ele conhecia os desvarios da ganância. Não havia boia no mar das ambições. Parcas, as suas, preferia catar os descartes. Sem emboscadas, recolhia as madeiras que a natureza colocava para dormir. Galhos. Pequenos troncos. Tomava-as com o cuidado de um socorrista. Dialogava com as marcas. Veias secas. Veias abertas. Sulcos e cicatrizes de narrativas materiais. Almas presas em calabouços esquecidos. Falhas que indiciavam presenças. Ausências. Contornos da vida. Força de dentro. Fora. Além.

As mãos do artista percorriam as cicatrizes da floresta. Saudavam-nas. Imprimiam emoções. A madeira, agradecida, devolvia-lhe escritura e sentimentos, imagens de acontecidos em novos planos, visões que ele sabia estarem ali. Chegariam à forma no momento certo.

Era um fazedor de santos. Caminhava por vias nebulosas, entre fronteiras que cediam à pressão. Esculpia. Fazer santos era um ofício de várias mãos, herdara-o no silêncio das lições de seu pai. Não escolhera modelar a madeira. As madeiras escolheram-no para modelá-las ao prazer e à necessidade do acaso. Era o acaso que o levava por caminhos sombreados, desguarnecidos. Gostava de caminhar procurando pensamentos. Assim as encontrava: trancando as trilhas, caídas aos pés umas das outras, carcomidas por hospedeiros naturais, dilaceradas por raios e ventos, fendidas por mãos desavisadas. Violadas. Restos de uma devastação. Provas de crime. Era assim. Encontrava-as no precipício do litígio. Exploração.

Carregava-as em braços abertos. Ia sozinho. Desencontrado, aturdido. Saía atrás das próprias dores. Deparava-se com as delas. Não esculpiam palavras. A poesia verbal lhe talhava o peito, mas corria das frases. Desejava gritar. Dizer. Falar. Crepitava o fogo da inquietude por debaixo da pele. Pesava o preço da sensibilidade cobrando depósitos antecipados. Diziam dele: homem sonhador; desafeito ao trabalho; sem tempero à dureza da vida; desprovido de ambição. Prisioneiro de história mal contada, desculpava-se fazendo imagens. Figuras que lhe pareciam ter vivido razões demais. Ambições de amor sem pleito.

Reconhecia os vazios pelos quais a beleza intocada esvaía-se lentamente. Também a madeira perdia a inocência dos sonhos. Fragmentos da esperança. Ele mascarava fases de extremo desespero com momentos de absoluta criação. Dizia não “fazer santos”. Afirmava que eles chegavam cobrando débitos sobre os pedaços de si. Também ele era um tronco tombado, sulcado, esfacelado por tempestuosas ânsias. Identificava-se com o chão coberto de cacos. Restos. Deles advinha a sua arte. Se é que assim se poderia chamar o desejo insano de colocar um rosto onde as passagens se fechavam. Buscava os contornos, as esquinas, os desvios, sem desejo de ultrapassá-los. Movia-se pela força contrária ao dom que se manifestava. Dom? Esculpia um pedido de perdão pelo vazio da alma.

Em uma dessas tempestades que arrasam tudo a sua volta, o vício no esquecimento o encontrou caído aos pés de uma porta. Uma porta sem tranca. O esquadro desfizera-se em pedaços. Braços pesados, mãos trêmulas, levou-se em corpo para dentro da casa vazia. As paredes carcomidas e solitárias abraçaram-lhe, febris. Acostumado às agruras do frio, comoveu-lhe o aconchego. A casa de adobe guardava os restos da história de alguém. Restos espalhados a esmo pelo chão batido. A terra macerada acarinhou a face contorcida pelas dores ocultas e pelos excessos cometidos: dependente de anestesias. A luz entrava sorrateira como se pedisse desculpas pelo brilho a rasgar o ambiente. Nesgas do dia que lá fora abria um sorriso sem disfarces. Descobriu três cômodos. Como um náufrago de si mesmo, arrastou-se pelas divisões contando os objetos deixados para trás: uma caneca lascada, alguns trapos sem cor, caixas destampadas, um velho e gasto pé de sapato, o tampo do que talvez um dia tivesse sido uma mesa, um… 

Segurou a cabeça e deixou o vômito azedo das lágrimas saltarem em jatos. Anestesias não vêm de graça. Arrastam consequências. Cobram intervenção.

A um canto, tombado sobre outros restos, ele o viu. Enegrecido, sem uma parte do braço direito, um São Francisco de Assis olhava. Trêmulo, chorando como choram as crianças e os santos, levantou a madeira talhada. Os sulcos ingênuos sobre a peça antiga deixavam-se ver aqui e ali, contrastando com a precisão do olhar impregnado de compaixão. Tanto procurara por aquele olhar, tanto desejara imprimir em suas esculturas aquele sentimento que lhe escapava por entre os dedos. O santo de madeira fixava-o através da poeira. O cordão de suas vestes chegava aos pés descalços. O ferimento no dorso da mão que levava ao peito era profundo. Sem autor, sem data, sem nome. Um entalhe abandonado. Sobre o chão de terra, em lágrimas, pensou com firmeza: “A madeira já traz o santo, eu só preciso encontrá-lo.”


Imagem de destaque: Kaiserb

 

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