O Ensino da Ditadura nas escolas (Parte III)

 Antonio Carlos Will Ludwig

É preciso observar que esta proposta se mostra bem diferente da anterior. É de se supor que as mudanças ocorridas foram possíveis graças ao avanço da produção histórica e sociológica nas universidades. A esse respeito vale observar o surgimento do conceito de ditadura civil-militar em substituição ao conceito de ditadura militar e o aparecimento de diversas abordagens explicativas. Os livros didáticos usados nas escolas desde alguns anos antes da promulgação da nova base curricular já haviam incorporado esse avanço, feito menções aos acontecimentos execráveis da época e ampliado significativamente o número de páginas destinadas ao assunto.

Cabe notar também que tal modo de ensino não se encontra presente nas escolas militares. A esse respeito existem publicações reveladoras de que desde há um bom tempo, nos colégios castrenses o período ditatorial é estudado por meio do livro intitulado História do Brasil: Império e República editado pela Biblioteca do Exército. Nele predomina uma visão eminentemente narrativa voltada para as ações de cada um dos governantes que se sucederam, além de não valorizar os conhecimentos científicos produzidos pelos pesquisadores. O período é tratado como uma revolução democrática, a tortura e os desaparecimentos não são mencionados, a censura aos meios de comunicação é vista como uma medida necessária ao desenvolvimento do país e as cassações de políticos constituíram uma reação à inflexibilidade demonstrada pelos partidos de oposição. Há menções ao combate à tentativa de comunização do país e aos grupos subversivos perturbadores da ordem social e vitimadores de pessoas inofensivas.

Ainda em relação à esfera militar convém observar a presença de um fator relevante que tende a reforçar este tipo ensino, isto é, a Ordem do Dia referente a 1964. Como muitos sabem, desde há vários anos, este documento vem sendo produzido pelo Ministério da Defesa e distribuído para todas as unidades militares do país. Embora a cada ano apresente mudanças o essencial da mensagem continua intacto. A penúltima emitida em março do ano passado enunciou que o movimento de 1964 emergiu porque a democracia se encontrava sob ameaças e a intervenção militar conseguiu afastá-las. Os militares que se alternaram na direção do país realizaram uma boa governança e respeitaram a democracia. Depois de vários anos ela se fortaleceu, os civis reassumiram o governo da nação e os militares não mais têm a pretensão de fazer ingerências na área política. Observe-se que esta narrativa assenta-se numa concepção heróica relativa aos soldados salvadores, que por serem superiores aos demais podem tutelar o Estado e manter a elástica autonomia das Forças Armadas. 

É preciso enfatizar que o ensino de história se mostra como um importante recurso para a construção de visões de mundo e de vida em sociedade bem como colabora para a assunção de atitudes e tomada de iniciativas. Assim sendo, esta forma de abordar os vinte anos de governos militares, semelhante à uma catequização, e as repetidas ordens do dia que lhes são consoantes estão ajudando a formar uma mentalidade militar que não se coaduna com o ordenamento democrático do país. Embora não seja necessário substituir este livro é imprescindível acrescentar outros que expõem interpretações alternativas desse momento histórico. O mesmo precisa acontecer com esta ordem do dia. Nela devem aparecer outras versões do ocorrido ao lado da narrativa que vem se repetindo. 

Quanto ao modo de ensinar o tema em pauta nas escolas civis, o qual é baseado nas determinações previstas na nova base curricular, cabe dizer que ele se mostra coerente ao princípio legal da gestão escolar democrática ensejadora do uso de procedimentos didáticos democráticos na sala de aula. Revela-se consoante também à concepção pedagógica construtivista que da mesma forma se sintoniza com tais procedimentos. No entanto existe uma limitação muito séria, qual seja, o processo de aprendizagem se circunscreve à área cognitiva. As dimensões afetiva e procedimental não são contempladas, porquanto inexiste a pretensão de provocar nos alunos o desenvolvimento das atitudes de indignação e de repúdio em relação às ocorrências abomináveis da época bem como não existe o anseio de instá-los a concretizar ações mais amplas tal como a realização, no mês de março de todos os anos, de um evento agregador de toda a comunidade escolar voltado para abordagem da ditadura.

A desatenção para com estas atitudes e procedimentos se deve a dois fatores. O primeiro se refere a um dos pilares que sustenta a nova base curricular, isto é, o ideário pós-moderno assumido por muitos educadores. O projeto educativo da pós-modernidade assenta-se basicamente na ideia da emergência do sujeito como ator e autor o qual deve se dedicar afincadamente aos seus projetos de vida. De acordo com tal ideia a escola deve apenas fornecer todo o auxílio possível ao aluno para que ele consiga elaborar e concretizar seus projetos. Assim sendo, não cabe a ela encaminhá-lo rumo a outros propósitos que não são ou podem não ser ligados aos seus interesses. 

O segundo fator, intimamente associado ao antecedente, diz respeito à finalidade de formação para o exercício da cidadania prevista na referida base. Esta finalidade aí aparece em decorrência da sua previsão na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Inexiste nela um conceito de cidadania resultante de uma necessária teorização que permeie as áreas do conhecimento e seja responsável pela articulação e unidade entre as mesmas, ele é apenas subentendido ou pressuposto. Consequentemente esta base não apresenta um rol de estratégias de ensino aprendizagem voltada ao preparo do cidadão. O conceito mais adequado que nela deveria constar é o de cidadão ativo o qual faz referência ao indivíduo que se considera governante e não apenas governado e que realiza ações transformadoras no âmbito da esfera pública em benefício da coletividade.


Imagem de destaque: Diego Gurgel / Secom

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