Não se enganem! Há um problema no Projeto de Vida.

Cleiton Donizete Corrêa Tereza

Visualizem a seguinte cena. Um homem aparentando ter cerca de trinta e cinco anos, com ares de jovialidade, pele e cabelos claros, barba e bigode cuidadosamente aparados ao estilo hipster, bem acomodado sob um pergolado, numa casa confortável com piscina e a serra toda verde ao fundo em um belo dia de sol, começa a discorrer em um vídeo gravado sobre como ter projeto de vida. Entre outras falas, o rapaz diz: “pergunte para seu avô, para o seu pai, dependendo da idade dele, com quanto anos eles começaram a trabalhar, com certeza você vai ouvir relatos de pessoas que começaram a trabalhar com 12 anos, 14 anos de idade”; “observe que na época de seus avós a adolescência não existia, você vai ver que a adolescência é algo que foi criado para postergar as responsabilidades da vida adulta”; “comece a traçar uma meta e vá rumo ao seu destino”; “se todos nós vamos ter que trabalhar um dia, quanto antes eu começar, melhor”; “não fique postergando seu projeto individual de crescimento”; “comece a ter projetos de vida para que você não se torne um adulto frustrado lá na frente”. Provavelmente eu não teria acesso a este vídeo, com poucas curtidas em um portal de compartilhamento de mídias em que foi publicado, se não fosse o fato dessa pessoa, formada em jornalismo, ter feito, em nosso município, repetidos ataques aos educadores nas redes sociais, dizendo serem estes preguiçosos, aproveitadores e covardes ao questionarem o retorno às aulas presenciais no contexto de pandemia.

O apelo à necessidade de um, ou alguns projetos de vida ao estilo self made man, não vem somente de pessoas agressivas e conservadoras e surfam na onda do fascismo verde e amarelo, como nossa privilegiada personagem real do primeiro parágrafo. Fato este que já demonstraria um grave impasse no discurso neoliberal do projeto de vida fundamentado na responsabilização do indivíduo. Porém, a situação é mais grave. A defesa de projetos de vida passou a integrar o currículo escolar brasileiro com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os currículos reformulados, a partir dela, em estados e municípios. O Currículo Referência de Minas Gerais para o ensino médio traz: “O Projeto de Vida oferece ao estudante tempos e espaços para desenvolver uma reflexão autêntica sobre três dimensões fundamentais para a organização de seu ser-no-mundo, a saber: as dimensões pessoal, social e profissional.” Lendo um trecho como esse, de forma isolada do conjunto e de suas origens, pode parecer difícil questionar a proposta. Por isso, é preciso lembrar que tanto a BNCC quanto o Novo Ensino Médio (NEM), foram ratificados sob fortes críticas de educadores, pesquisadores e estudantes durante o governo ilegítimo e retrógrado de Michel Temer (MDB), pós Golpe de 2016. Naquele governo, o ministro da educação foi o administrador de empresas e político de direita Mendonça Filho (DEM). Atualmente, Filho é consultor da Unesco e da Fundação Lemann. Essa fundação, oriunda de grandes empresas e bancos, em meio a várias outras que atuam de forma semelhante, se apresenta como uma instituição filantrópica familiar, com o objetivo de agir na educação e na formação de lideranças, segundo seu próprio site. Na realidade, essas fundações, ONGs e institutos trabalham de forma a influenciar as decisões do poder público em benefício de uma educação que atenda aos preceitos empresariais, como ficou claro com a defesa da BNCC e do NEM, estimulando o empreendedorismo e com interesses na transferência de recursos públicos para o setor privado. A ONG Todos Pela Educação, colocada sempre em evidência pela Rede Globo, também conta com investimentos da Fundação Lemann. O bilionário Jorge Paulo Lemann, responsável pela agência de lobby e que a ela dá o nome, é dono da AB Inbev (Ambev), multinacional do setor de bebidas, além de ter comprado as empresas estadunidenses Budweiser, Burger King e Kraft Heinz, de acordo com o site Seu Dinheiro. Lemann foi considerado o homem mais rico do Brasil, em 2021, pela Revista Forbes.

A partir dos preceitos da Teoria do Capital Humano, exaltada pelos capitalistas, desenvolvida por autores como Gary Becker, esse projeto de vida que tem sua implantação iniciada de forma sistêmica com as mudanças em curso na educação brasileira, centra a responsabilidade no indivíduo, de tal forma que mudanças econômicas e políticas estruturais não entram definitivamente do debate. Nesses moldes, todo projeto de vida é bem-vindo, desde que atue diante dos ditames do capitalismo neoliberal, partindo de suas bases econômicas de reprodução e acumulação do capital, tornando-se uma forma de vida, como nos ajudam a entender os autores do livro Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico: “desenvolver talentos e potencialidades, possuir soft skills, inteligência emocional e visão de futuro não são apenas sinais da renovação dos parâmetros de demanda ou de concorrência, mas uma forma de vida na qual a gestão governa todas as pequenas decisões e hábitos de alguém, da sua forma de vestir ao modo como se alimenta. O tipo de diversão e uso específico da linguagem, bem como a visão de mundo em estrutura de gestão, serão objeto de contínuas palestras motivacionais e, no final de 2017, impulsionaram o fenômeno das mentorias e coachings.”

É inegável que dentre muitos dilemas para as juventudes brasileiras está a capacidade em se organizar e conseguir mobilizar energia e conhecimentos, projetando caminhos possíveis para que tenham uma vida com dignidade. Contudo, o que começam a ser implantadas são a continuidade dos estudos, a construção de carreiras profissionais, a manutenção e o desenvolvimento de relações afetivas respeitosas, subjugados à lógica da pessoa que elabora e reelabora a si mesma, o tempo todo, para sobreviver e, quem sabe, vencer, em um sistema capitalista marcado por uma desigualdade econômica estrutural e uma política excludente. A reportagem exibida pelo Jornal Hoje da Rede Globo no último dia 16 foi exemplar. A entrevistada Anna Penido, apresentada como consultora do Movimento Pela Base, mantido pela fundações Lemann e Maria Cecília Souto Vidigal, e pelos institutos Natura, Unibanco e Itaú, afirmou: “a ideia é realmente preparar esses estudantes, não só para que eles possam ter aspirações, mas que eles possam desenvolver também algumas qualidades como foco, disciplina, determinação, resiliência, perseverança, para que eles possam se organizar e perseguir esses objetivos sem desistir quando os obstáculos aparecerem.”

Hoje, os jovens enfrentam incertezas profundas quanto às possibilidades de estudos em instituições públicas de qualidade e de inserção decente no mundo do trabalho. Crescem os ataques à educação com projetos empresariais, permanente ausência de recursos para melhoria significativa das estruturas físicas das escolas e valorização dos profissionais em educação, precarização das condições dos trabalhadores por meio da desregulamentação de direitos trabalhistas e redução de acesso às atividades esportivas e culturais para além do que impele a indústria cultural, da competição e da padronização dos corpos. 

Assim, os projetos de vida calcados no indivíduo são insuficientes e tendem a oprimir ainda mais os sujeitos, que terão tendências ao sofrimento e ao adoecimento diante de não conseguirem se realizar em um mundo “cheio de oportunidades”, que de verdade nunca existiu dessa forma. 

E mesmo com esforços louváveis de parte dos autores de livros didáticos de Projetos Integradores e Projeto de Vida, previstos para chegarem às escolas em 2022, em trabalharem nas brechas para ampliar os horizontes da proposta, o processo que estimula o ensino reduzido em termos de crítica e efetividade para os jovens da escola pública é notório. Uma escola estadual de Poços de Caldas, mais avançada na implantação do Novo Ensino Médio, deve contar com cursos técnicos agregados de eletroeletrônica e logística, mesmo que existam dúvidas sobre a garantia de equipamentos adequados e, surpreendentemente, já está anunciado seu cardápio “variado” de cursos pós-médios: administração, recursos humanos, vendas e marketing. A fala do pastor, e atual ocupante do cargo de Ministro da Educação, Milton Ribeiro, de que universidade deveria ser para poucos, está em consonância com as políticas educacionais do empresário, e atual ocupante do cargo de governador, Romeu Zema (NOVO), em Minas.

Portanto, mesmo que os educadores, gestores, produtores de materiais didáticos busquem fazer, como ouvi outro dia, do limão uma limonada, não se enganem. Não basta resiliência, dedicação e fé, há um problema central com a proposição desses projetos de vida, cuja superação passa inevitavelmente por transformações econômicas e culturais profundas, e isso envolve reflexão crítica corajosa e participação política solidária e coletiva constante.

 

Para saber mais:

SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Silva; DUNKER, Christian. (Orgs). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico.  Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Educação. Currículo Referência de Minas Gerais: ensino médio. 2021. Acesse aqui

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