Manchas da sorte – reais são as palavras (Parte II)

Ivane Laurete Perotti

O vento seco insistia em pesar o dia. Seco, já. No desabrigo, a paisagem competia com as fomes. Cervantes rodava entre as mãos e as narinas. Detinha-se em abri-lo. Quase não dormira desde o presente. Presente. Nem a comida minguada batia-lhe no estômago magro. Suspirava. Entregara-se à volúpia daquela emoção. Extasiado. Comovido. Não dissera gratidões. Fechara-se com o livro na concha dos prazeres desconhecidos. Assustadores. Dolorosamente esperados. Inconclusivos. Mapeados na pele eriçada. No choro silencioso. Olhos vitrificados. Temor pela alegria. Pelo tempo de sua permanência. Tremiam-lhe mãos e alma. Insone. Dois dias de reclusão. 

Voltou à escola. Quieto. Pouco ouvia dos: “Mandou bem, Ká! Mandou bem!” O movimento em torno dos livros novos comovera a escola. Trabalhavam para registrá-los. Sentiam a novidade entre os dedos. Rodas de trabalho organizavam prateleiras de urgência. As conversas e os sorrisos rasgavam o pátio. Muitas obras. Coleções inteiras. E soube de outros Cervantes. Mas o seu era apenas seu. A começar pela capa. Grossa. Pesada. Verde escura. Letras douradas. Uma centelha na arca. Uma arca. 

Não contou as pedras da volta. Correu. Pronto. Centenas de páginas o esperavam. Palavras seculares. Pulou o banho. O pão esmaecido. O café ralo e frio. À mesa manca, abriu a tampa. Primeira folha. Dedos suaves. Olhos Raio X. Narinas dilatadas. Segunda folha. Respiração presa. Terceira. Suor. Tontura. Ternura. Voracidade. Lentidão. Índice. Notas. Prefácio. Capítulo I. Foi urinar. Piscar. Água. Estômago contraído. Câimbra. Divagou diante da mesa. Aproximou-se. Tomou as páginas de chofre. Leu. Leu. Releu. Dez, vinte vezes. Pereceu.

Angustiado, sonhou com Cervantes diante do rei. Releu a ordem do monarca. Sofreu a ansiedade do autor. A espera. O trabalho. Os anos de escrita. O fogo dos apagamentos. Acordou com o próprio grito. Vira Cervantes queimar a obra diante de uma plateia silenciosa. Viu os olhos do autor saírem para fora das órbitas. As mãos queimadas. O corpo retorcido. As lágrimas de misericórdia. Saltou da cama. Conferiu o volume. Escondido. Protegido. Inviolado.

O caminho desapareceu sob os pés ansiosos. Precisava encontrar a professora. E feito um furacão que perde o centro, deu com ela abrindo o portão da escola. Sem ar, gotejando o suor dos apaixonados:

— Professora… professora!

— Respira, Kaio. Respira. Calma! O que aconteceu? – obviamente ela pensou em algo trágico. Era comum a tragédia tanto quanto o socorro que se buscava na escola.

— …eu não entendi. Eu li. Li de novo. Não entendi. – olhos de vidro. Rosto molhado. 

A professora não colava os indícios ao contexto. Ele não era um menino de alvoroços. Assustada, fê-lo entrar portão adentro.

— Tem outra tradução? – a voz saiu fina e apagada. Chorosa. Esfacelada. 

— Ká… você está se referindo a … a … – não terminou o raciocínio. Nem a frase.

— Cervantes. Eu não entendi nada. Nada. Eu… – havia um choro na ponta daquela voz. Imperioso. Sufocado. A timidez e os brios adolescentes haviam desaparecido. Era um menino em real desespero.

A professora, entre o desejo de dizer-lhe que era muito por pouco e a vontade de tomá-lo ao colo, buscou na experiência a solução.

— Você lembra das poesias nordestinas que trabalhamos? Lembra?

Ele lembrava. Mas não fazia sentido. Trabalharam as poesias por longas semanas. E algumas pareciam até mais difíceis de interpretar do que as poesias traduzidas de autores estrangeiros. Ele amava a poesia como quem descobre um amor único e teme perdê-lo. 

— Elas também provocaram essa sensação sobre a linguagem. Não provocaram?

— Não. Só…só precisávamos aprender sobre o ritmo e… os regionalismos.

— Então. Vamos começar por aí. Onde está seu livro?

Kaio não respondeu. Não tiraria o seu livro de casa por nada. Talvez compreendendo o silêncio do aluno, a educadora abriu a biblioteca. De posse de uma das edições doadas à escola, deixou Dom Quixote de La Mancha nas mãos do menino. Ele a orientou sobre as notas do editor, as notas comemorativas já lidas e entendidas. Abriu o Capítulo I. Ali, os olhos em vidro orbitaram tamanho maior. O suor retornou. As mãos, em clemência, sublinharam, lentamente, as primeiras frases. 

Tocada pela urgência do aluno, a educadora mediou o leitor. Sentaram-se à luz daquelas primeiras páginas. Leu. Leu em voz alta e acompanhou as emoções de Kaio. Leu para ele. Leu com ele. Leu para si mesma. Leu para os alunos que foram chegando. A cada frase, um sentimento. A cada palavra, uma investigação. Mas foi o ritmo que liderou a leitura. Quem diz que a ficção não se constrói com melodia não aprendeu a ler. Os pontos escondem artimanhas. Armadilhas. Arqueologia da escrita horizontal. As palavras vibram. E a cada construção, as vibrações se armazenam ou dissipam. Os parágrafos, ah…essas portas de passagem para ir e ficar. A depender do autor, ganham vida própria. Jogam. Escondem a batida. Envergam-se pelas bordas do texto. Teimam. Entrincheiram-se. Negam-se à primeira leitura. Beijam o texto como tijolos descascados. 

Quem viu, ouviu. Muitos alunos e uma professora. Muitas leituras e uma obra. A voz da educadora apaixonada não tremia dúvidas. Exalava prazer. Segurança. Conhecia o posto. Exposto. A escola mobilizou-se naquele pequeno espaço de escutas. E o vento seco já não carregava metáforas. Pelo menos, não naquele momento. A realidade eram palavras.

 

Continua na próxima edição


Imagem de destaque: PxHere

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