Lugar de fala é sectarismo?

Descompaixão pela ferida narcísica de homens públicos

Bárbara Regina Altivo

Este texto é o fruto quente do meu incômodo feminista. Uma resposta ao chamado da escrita como circulação do trauma. Palavreio para exorcizar. Um caminho de desengolir choro. Ótimo tratamento para dor de garganta persistente. Vazão no meu corpo de ideias.

Começou no começo, quando fui formada na beira da pia, enclausuramento de minha mãe. “Filha minha será diferente de mim! Estude muito. Seja alguém.” Uma pessoa que pode, por exemplo, sair de casa. Alguém tipo quem? Essa é fácil, uai. O meu avô: Carlos Altivo. Intelectual, exímio orador, escritor da academia de letras local. O cara era foda. Eu só desejava ser uma réplica perfeita do grande patriarca: líder, protagonista do próprio destino, uma carlosaltivinha. No embalo da ilusão, persegui uma espécie de libertação pelo intelecto, esse delírio coletivo cultuado nas universidades que promete aplausos e reconhecimento para quem mortifica o corpo por anos e anos em cadeiras, sem tempo para perder, por exemplo, amamentando um bebê.

 >>>>graduação>mestrado>doutorado>aiachoqueestoucansada.

Fiquei míope (de alma também?) e tive dor nos rins. “Pior que essa aí, só a dor do parto”, me disse a enfermeira. Gente, a cultura cristã de sofrência já deu. Acho que preciso parar, respirar. Odeio esse povo com seus cafezinhos e autores e viagens para a Europa. Vou largar esse trem. Não, não posso. A pia me espreita: vai vacilar?

O sistema de intelectualização da pessoa é violento. Tem algo de masculinidade adoecida aí… e branquitude também, o combo. Crescer no prestígio acadêmico em boa parte tem a ver com jogar essa disputa egóica. Eu entrei na dança sinistra das cabeças infladas e me afastei da vagina. 

Ouvi falar de feminismo pela primeira vez, nem sei quando. Mas me lembro da briga com o catequista. Maria é virgem? Fiquei triste: sexo é bom, né? E mulher não pode? 

Opa, uma chave virou e comecei a identificar um tanto de coisas que o que meu corpo de 15 anos de idade, no interior de Minas, não estava autorizado a fazer: andar na rua sozinha depois das 22h, ficar sem blusa, fazer xixi na rua, sentar de perna aberta, transar, cortar cabelo acima dos ombros, fazer tatuagem, usar roupa mostrando as coxas e os peitos, rebolar, rir alto, brincar com os meninos, peidar, arrotar, falar palavrão, assumir que caga, comer muito, dançar pra valer… e segue a ciranda dos interditos.

Corta para os 25. Estudar pode, ufa. Escrever artigo com orientador também. Revisar textos alheios também. Organizar congresso então, uma beleza! Falar em reuniões do grupo de pesquisa, pode, mas sei lá, primeiro vou esperar os professores falarem né. Compor uma mesa?? Uhh, aí pode ser, mas só de mulheres falando sobre mulheres? Sem aplauso para homens? Eles que cederam esse espaço pra gente, né. Hum. Só mulheres falando? Fora da cozinha? Aí talvez seja demais. Ingratidão. Ameaça à democracia. 

O salto acima pode parecer drama, exagero ou descontinuidade lógica. É uma operação honesta, contudo, que meu coração faz: se eu não podia ter uma existência pública no meu bairro de interior, vou tê-la impunemente na universidade e nas escolas? 

Quem define a aplicação correta de um conceito?

O texto “Lugar de fala e a educação democrática”, de Cleiton Donizete Corrêa Tereza, publicado neste jornal na semana passada, foi um gatilho para mim. O autor discute o uso do argumento do lugar de fala enquanto impeditivo para a livre participação de todas as pessoas no cenário democrático. Ele abre o texto contando sobre a ocasião em que, enquanto coordenador da Secretaria Municipal de Educação de Poços de Caldas, atuou na organização de um evento sobre gênero nas escolas, no Dia Internacional da Mulher. Segundo ele, o trabalho de bastidores que realizou foi de suma importância – negociação com vereadores conservadores e administração de recursos escassos – para a realização do evento. Porém, o autor se sentiu injustiçado quando as integrantes do movimento feminista reivindicaram a presença exclusiva de mulheres nas falas iniciais e na mesa sobre o Dia Internacional da mulher. Para o autor, essa foi uma “concepção equivocada de lugar de fala”.

Pois eu acho uma ótima concepção! 

Segurando nas mãos das feministas ingratas e radicais que não teriam inclusive o devido entendimento conceitual do que na verdade significa “lugar de fala” (contém ironia), eu digo: no Dia Internacional da Mulher, o mínimo que pode ser feito pelos homens, se assim for a vontade das mulheres, é o silêncio. 

Silêncio como reconhecimento de uma aliança. Redistribuição dos aplausos. Delimitação de uma impossibilidade: nunca vou ser o outro, mas posso aprender com ele. Aprender com elas, as feministas. No Dia Internacional da Mulher, respeitar o protagonismo completo e irrestrito das mulheres. Isso não é sectarismo, é conexão e respeito.

Sei que o texto com o qual converso traça uma argumentação mais elaborada sobre a problemática do lugar de fala. Traz outros exemplos. Não entrarei na questão conceitual, pois não fui impelida a isso. O que urge é o afeto.

O meu ponto aqui é simples: parei na mesa das mulheres. Porque doeu. Porque, mesmo vinculado a outra esfera de poder – o poder público -, o episódio me fez lembrar a expressão ressentida de alguns colegas homens na universidade que precisam se recolher um pouco, sair do palco um dia ou outro, manter-se por momentos pontuais na cozinha do conhecimento. A expressão de repúdio do texto mencionado em relação à reivindicação feminista fez ecoar em mim a onipresença da tutela de figuras masculinas, profundamente vinculadas à polis ocidental, em todos os espaços públicos nos quais outros seres querem tomar a palavra. Diferentemente do texto “Lugar de fala e a educação democrática”, considero importantíssimas, dignas e urgentes as reivindicações de lugar de fala e a composição de fóruns acadêmicos e políticos nos quais a experiência na carne é a fonte de conhecimento e participação cidadã por excelência. 

Não faço uma crítica pessoal ao autor, definitivamente. O que almejo é reverberar debate. É expressar o meu apoio às mulheres de Poços de Caldas que corajosamente demarcaram limite ao gozo público masculino em um dia que dizem ser nosso. 

Um salve ao movimento feminista em sua multiplicidade, interseccionalidade, limites e potencialidades de ação no mundo! Mexeu com uma, mexeu com todas.


Imagem de destaque: Autora

 

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