Lugar de fala e a educação democrática

Cleiton Donizete Corrêa Tereza

Há alguns anos, quando coordenava o setor da Secretaria Municipal de Educação de Poços de Caldas responsável pela formação continuada dos educadores da rede, desenvolvemos um evento sobre gênero nas escolas, por ocasião do Dia Internacional da Mulher. A iniciativa, que partiu do movimento feminista local, foi acolhida e articulada em parceria com nossa equipe. Não foi fácil realizar esse encontro por dois motivos: oposição dos vereadores conservadores que compunham a base do governo na Câmara e recursos escassos, especialmente para remunerar e ofertar o suporte adequado às palestrantes convidadas. No dia do evento, com um belo público presente, aconteceu uma situação desconfortável. As integrantes do movimento feminista não queriam que eu fizesse uma fala inicial, tampouco que fizesse parte da composição da mesa abertura. O motivo? Eu não teria “lugar de fala”, mesmo tendo colaborado diretamente para a realização e estando de pleno acordo com a necessidade da temática. Ou seja, naquele momento, enquanto homem hétero, o que eu deveria fazer era calar e ouvir. Por fim acordamos que eu daria as boas-vindas, mas não compus a mesa.

Nos anos que se seguiram, pensei que essa concepção equivocada de lugar de fala tivesse sido superada. Mas duas situações recentes me fizeram voltar à questão. 

A primeira foi em um debate entre os pós-graduados do programa ao qual estou vinculado enquanto doutorando, envolvendo a produção e os posicionamentos de uma autora negra brasileira. Uma pesquisadora afirmou que, enquanto mulher branca privilegiada, não se via em condições de questionar as posturas incoerentes da escritora negra, por isso iria se abster do debate e focar nas reflexões sobre a branquitude. A segunda, há poucos dias, foi a resposta de uma estudante do primeiro ano do ensino médio em uma avaliação de recuperação bimestral. A partir dos estudos realizados e contando com dois textos de referência, o enunciado pedia para que os alunos desenvolvessem um texto sobre as condições da população negra durante a escravidão no Brasil e quais as contribuições da negritude para a sociedade brasileira e sua condição na atualidade. A estudante, após copiar um trecho de um artigo e colar, como se fosse uma produção sua, acrescentou que não sabia muito o que escrever pois não era esse seu lugar de fala.

Mesmo que possa existir a possibilidade, que não pode ser comprovada, do uso do argumento do lugar de fala para não adentrar no estudo e na reflexão das questões raciais de forma embasada, crítica e sincera, fica evidente que o uso do termo tem resultado em um bloqueio para os diálogos. Mesmo em ambientes educativos e de pesquisa, existem hoje dificuldades de análises das opressões, envolvendo conhecimentos históricos, políticos e sociológicos, por causa de equívocos de compreensão e de estratégias nas lutas por reconhecimento.

No recém lançado livro Como o racismo criou o Brasil, do sociólogo Jessé Souza, destaca-se o capítulo “Parece emancipação, mas é só fraude neoliberal: sobre ‘lugar de fala’, ‘representatividade’ e afins”. Jessé procura demonstrar, entre outras coisas, como as ideias advindas do multiculturalismo têm resultado em engodos que acabam favorecendo as exclusões neoliberais, sobretudo ao deixar de lado reivindicações universalistas. Por questões discursivas, propagandísticas e tentativas de legitimação – para permitir ao capital continuar se reproduzindo e explorando com a fachada aparentemente limpa –, os poucos incluídos, que possuem atributos adequados à determinadas posições, que passam necessariamente por elementos de classe e de adaptação, não seriam somente peças ingênuas para aparências, mas também danosos, afinal, afetariam negativamente aqueles e aquelas impedidos de acessar posições dignas e elogiosas, que tendencialmente serão responsabilizados e humilhados por si mesmos ou por outros pelos seus fracassos.  Segundo Jessé, acontece “um casamento do novo discurso econômico do empreendedorismo com um discurso político que reproduz, na esfera pública, as mesmas falácias do ativismo individualista neoliberal. Como a luta se reduz, ao fim e ao cabo, à tentativa de conquistar um lugar ao sol para si mesmo, passa a existir um ‘vale tudo’ performativo, em geral extremamente agressivo, que a autoridade autoimputada e incondicionada do lugar de fala – na verdade um mero atalho para evitar o livre confronto de ideias baseado no melhor argumento – exemplifica à perfeição.” (SOUZA, 2021, p. 43).

No próximo mês, por ocasião do dia da Consciência Negra (20/11), debates sobre diversidade, colonialismo/colonialidade, racismo e outras violências devem ganhar espaço. E isso é necessário, especialmente nos ambientes escolares, para esclarecermos e combatermos as profundas desigualdades que marcam a sociedade brasileira. Contudo, é preciso repensar certos discursos e comportamentos, bem-intencionados ou não, que nos últimos têm caminhado em direção contrária à educação democrática. Educar para a valorização e fortalecimento da democracia, de maneira efetiva, implica considerar a centralidade das trocas respeitosas (e também dos conflitos) permanentes entre os diferentes, de tal forma que não existam tabus e sectarismos, algo que as lutas por reconhecimento nos últimos anos, em certa medida, terminaram por estimular.

 

Para saber mais

SOUZA, Jessé. Como o racismo criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021.


Imagem de destaque: cedida pelo autor. 

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