Literatura infantil: formação, arte ou direito?

Camila Souza Petrovitch¹

Coletivo Geral Infâncias

Em uma palestra sobre literatura em 2019, participei de uma conversa com a poetisa Ana Martins Marques. Perguntaram à autora de Livro das semelhanças qual era a função da literatura, e ela respondeu: “a literatura não serve para nada.” Penso muito sobre sua fala de tempos em tempos, principalmente quando me perguntam a relação da literatura com as crianças. Tal como a literatura “para adultos”, a literatura infantil não deveria servir para nada. Mas serve. No início do século XIX, quando pesquisadores afirmam que surgiram os primeiros livros de literatura infantil no Brasil, esta literatura se apresentou com objetivos formativos e um viés moral escolarizante. Quando voltamos o olhar para esse sujeito leitor, a criança, o que muitas vezes permanece é essa perpétua necessidade de formação, o famoso “vir a ser”, a incompletude. Esquecemos – ou ignoramos – que a criança já interpreta, compreende, imagina e cria. Queremos formá-la, condicioná-la às regras, ensiná-las um mundo inteiro, e quando carregamos a literatura com tal utilitarismo, negamos um direito primordial para ser humano: o direito à arte.

Proponho, portanto, neste breve texto, pensar a literatura em dois sentidos que se conectam: a literatura como arte e a literatura como direito. 

Segundo Kveta Pacovska, artista tcheca, o livro é a primeira galeria de arte da criança. Com a obra em mãos, a criança desde bebê experimenta as cores, os sabores, os sons e a fruição estética que a arte proporciona. Pensar a literatura enquanto arte significa considerar o potencial que ela tem de deslocar e de emancipar o sujeito. A criança pode vivenciar este deslocamento, ampliar suas experiências e ser impactada pelas histórias. 

Já Antonio Candido (1995) defende que todos os seres humanos têm direito à literatura. O autor afirma que precisamos da ficção e da fantasia para sobreviver, da mesma forma que precisamos comer ou dormir: a literatura também é uma necessidade básica. Diante disso, é fundamental que nos atentemos ao direito das crianças à literatura, e da literatura enquanto arte, já que esta é essencial à nossa existência.

As crianças usufruem da literatura muito pelos seus elementos simbólicos, elas constroem a base da constituição subjetiva. A literatura possibilita ampliar as experiências de vida, o encontro com a diversidade e pluralidade e ainda pode promover um exercício de empatia. Em cada história, diferentes personagens, contextos e tempos envolvem a criança, e oferecem diferentes elementos para que ela se reconheça, relacione e interprete suas vivências.

Os livros têm o poder ainda de despertar o encantamento e fomentar a imaginação. Por meio das narrativas as crianças podem viver diversas situações, aventuras e papéis sociais, que talvez não sejam possíveis no que chamamos de realidade. É o território do “e se…”. Essas relações das crianças com a ficção fazem parte da dimensão artística da literatura, que é muito diferente de um uso intencional estritamente didático ou moral dos livros… A literatura faz uso de um modo particular de construir sentidos, que desloca a linguagem habitual e corriqueira a uma dimensão estética.

Para que as crianças vivenciem uma formação leitora e se apaixonem pelos livros é importante que, desde bem pequenas, tenham contato com livros de qualidade e participem de mediações literárias significativas. Ou seja, apresentar uma literatura que desperte o gosto nas crianças, que mostre a elas o quanto as histórias e poemas podem ajudar a compreender e a viver a vida em toda a sua plenitude. E isso se aplica a qualquer criança, desde a mais tenra idade. Todas elas têm direito à literatura, e são incrivelmente sábias para desfrutarem dos processos criativos, das construções simbólicas e de sentidos para a existência humana – cada uma à sua maneira. 

 

1 – Pedagoga, FaE/UFMG, Mestranda do Promestre FaE/UFMG da Linha Infâncias e Educação Infantil. Professora da rede privada da Educação Infantil. Tutora do curso Leitura e Escrita na Educação Infantil. Integrante dos grupos: GEPLI – Grupo de estudos e pesquisas em Literatura Infantil, LEPI Leitura e Escrita na Primeira Infância, Bebeteca e Coletivo Geral Infâncias. E-mail: camilaspet@hotmail.com

 

Para saber mais
CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

PACOVSKA, Kveta. Kveta Pacovska. Revista Emília, 2013.

BAPTISTA, Mônica Correia. PETROVITCH, Camila. AMARAL, Mariana Parreira Lara do. Livros de Literatura para a primeira infância: a questão da qualidade. In: MORO, Catarina; VIEIRA, D. M. (Org.). Leituras em Educação Infantil: Contribuições para a formação docente. 1. ed. Curitiba: NEPIE/UFPR, 2019. v. 1. 256p.

 

*Esse texto também se inspirou no artigo “Livros de Literatura para a primeira infância: a questão da qualidade”, escrito por mim, Mariana Parreira Lara do Amaral e Mônica Correia Baptista. 


Imagem de destaque: acervo pessoal da autora.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *