Invisíveis como um rabo de cometa

Ivane Laurete Perotti 

Corpos ao sol. Longe da chuva que trazia lembranças. Crianças em pele cansada.

– Ô, Dona Lúcia, vamos entrar? – a cuidadora chamava para o recolhimento. Não que já não estivesse nele. Mas depois do sol da tarde, o que vinha era o vazio de movimentos. A Casa morria duas vezes. 

– Dona Lúcia? Vamos? 

Ria-se por dentro. Quem ali iria para algum lugar? Era a delicadeza da moça que ainda não fora calcificada pela mesmice do trabalho. Um leva e traz de corpos, na maioria imóveis, como ela mesma. Imóvel na exterioridade. Imóvel para as palavras de maldizer. Sim! Gostara de repetir impropérios. Fora a sua última diversão. Observar os trejeitos de choque e censura que falsamente vingavam na face de uns. Os de rica diversão na de outros. A maioria ensaiava o costume: ausência! Poker face, como dizia seu filho mais velho. Ele bem gostava da coisa. Acreditava ser necessária. Mas não sabia disfarçar tanto quanto deveria. Ou, queria acreditar ela, não fora totalmente tomado pela insipidez. Ainda. 

O ranger da cadeira provocava náuseas. Som lúgubre. Sobre rodas vivia a humanidade. Menos ali. Sobre rodas estagnavam. Espera rolante entre babas e mingaus insalubres. P… a! que decadência! Nem morrer com sabor era possível! P… a! depois dos prazeres conhecidos, não há memória que os enterre. Gostava de doces. Especialmente os muito doces. De insossa, bastava aquela espera.  Do nada, nada. Se era para partir, que fosse com tudo. Vivera bem. Desejava morrer do mesmo modo.  

– Olhem! a Dona Lúcia está corada! O solzinho fez bem! 

Pobre moça! Não era rubor do sol. Pensava nas vezes em que saltara os muros da sensatez para alcançar as partes que a vida escondia. As melhores. Mais arriscadas. Mais provocativas. Interessantes e duvidosas.  Lembrava de seu grande amor. Único, até descobrir que prazer e amor não andam pelos mesmos trilhos. Ah! Açúcar e mel não se misturam. O resultado anula ambos. 

– Eu acho que a senhora tem muita coisa linda para contar, Dona Lúcia! 

Tenho? Santa menina! Se abrisse a boca para dizer de mim, ela certamente ficaria rubra! Isso de associar a velhice com candura é uma baita safadeza. Corpos murchos não são despovoados de sentimentos. Emoções? Tá! não saberia tecer uma generalização, mas o contrário caía no lugar comum dos consensos sem senso. Sem noção! E a diversidade? Nunca gostara de tricotar. Gostava de ler. Conversar. Dançara com o vento. Empanara-me de areias frias. Quentes.  Luau sem Hula. Lua. Nua. Aventurara-me na vida como em jogo sem apostas. Úni-dúni-tê … nunca chegara à última sílaba. Salamê…minguê… nascera bem antes da Tia Fernanda e seu programinha na TV.  Tia… isso sim era um palavrão! Ninguém percebeu? Se perceberam, gritaram pouco. Tia!? Uma afronta!  Professora sim, tia não!  Por onde andaria o Ziraldo? Nasceu com cara de bonzinho, aquele lá. Recolhido em Casa? Em casa, talvez. Cabelos brancos não escolhem cabeça. E pensamentos não pegam mofo. Pegam? A sua colega de quarto parecia recheada de mofos. Triste! Muito triste perder a maior de todas as riquezas: o pensamento. Perdera a voz, mas ninguém se metia com o que pensava. Talvez, o mofo que recheava a colega brotasse da absoluta solidão de parentes. Ninguém a visitava. Ela não saía da cama. O sol lhe chegava por frestas da cortina. Não percebia. Fora-se. Sem pensamentos, iria para onde? Ouvia os comentários compassivos: estava assim há muitos anos. Vegetando sobre uma cama da Casa. Nem a morte lhe visitava.

– A Dona Lúcia é tão boazinha! A senhora gosta daqui, vovó? 

– que vovó o quê, menina!  Os meus filhos negaram o pau. Bem que você poderia… melhor não ter voz nessas horas. Agora seria o momento de nadar sem braços. Mas, se bem que, filhos, de um modo ou de outro, tem de ser uma escolha. Tivera dois homens. Bons filhos. Mas ainda procuravam pelo destino. Puxaram ao pai. Nada práticos. Menos ainda poéticos. O mais velho, economista, estudava caras de paisagem. O último, engenheiro, gostava de plantas; era bom no que fazia: para os outros. Moravam na casa que fora dela. Casa dos pais dos pais. Excesso de passados. Empacar filho? Não! Isso não! Melhor viver de visitas.  Quando lembravam de visitá-la. Cada qual trabalhava mais do que o outro. Filhos bons, diriam. Filhos burros, dizia ela. A prova de que não fora boa mãe. Trabalhar para quem? O pai se fora, ela estava indo. Não tinham filhos. Nem pensavam em adotar. Lambiam melado e escovavam os dentes. Frustrava-se ao pensar nas escolhas de ambos. Poderiam ter herdado um pouco de seu gosto por aventuras. Romances. Era delas que vivera. Vivia. Das lembranças que lhe faziam vibrar, enrubescer. Rir por dentro. Suar por fora. Enfim, essas coisas que habitam os invisíveis. Ganchos de pensões tardias. A velhice deveria chegar com chave de rodas. Ou chave de ouro. Tanto fazia. Desde que estivesse à mão. Nenhuma nem outra.  Assim passavam os dias sem o resgate da vida. Invisíveis como rabo de cometa.

 

Para saber mais

Úni Dúni Tê era o título de um programa infantil, com objetivos lúdicos e didáticos, dirigido por uma personagem, Tia Fernanda, exibido na TV entre 26 de abril de 1965 e 31 de dezembro de 1968. 


Imagem de destaque: Geralt

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