Home Office e a pedagogia do vírus

Evelyn de Almeida Orlando

Na semana passada, comecei a discutir como a vida tem sido nesse tempo de isolamento social, em que muitos de nós ficamos isolados em nossas casas e trabalhando remotamente, e como a sedução de trabalhar em casa pode se tornar o canto da sereia. Claro que algumas das mudanças que vivenciamos têm um lado bom, não nego. Inclusive, acho mesmo que algumas práticas podem e devem ser mantidas. 

Otimizar o tempo para cada uma das nossas atividades seria uma forma incrível de fazer o dia render para tantas outras coisas que podemos fazer. Encurtar distâncias, ampliando nosso alcance e circulação para além dos nossos limites geográficos, é fantástico. Poder trabalhar de onde você quiser ou puder é uma realidade sedutora. 

O problema é que essa não é a lógica. O excesso de atividades que temos tido não faz o tempo render, ele preenche todo o tempo. A lógica é que, se há economia de tempo, esse suposto excedente deve ser preenchido com mais trabalho. Não há espaço para hobbies ou ócio na sociedade do trabalho, não para quem trabalha. 

E, o mais impressionante, é que mesmo absorvidos pelo trabalho o dia inteiro, ainda assim não somos capazes de concluir nossas listas de atividades do dia, porque as demandas se multiplicam em um ritmo de que não damos conta. Demandas, muitas vezes sem sentido, apenas para nos manter ocupados e sugar de nós o máximo possível. 

O fato é que o tempo do trabalho mudou significativamente. As demandas não cabem mais no tempo reservado a ele por dia e, na tentativa de darmos conta delas, esticamos ao máximo o tempo do trabalho até ocupar praticamente todo nosso dia até não termos mais fôlego. 

Sem necessariamente batermos o ponto, entramos em modo trabalho assim que acordamos – alguns de nós chegam a ler os e-mails ainda na cama, antes de levantar – e desligamos apenas quando vamos dormir, à noite, não sem antes dar uma última olhada na caixa de e-mail ou nas redes sociais. Vai que tem alguma emergência… E assim vamos instituindo que o nosso dia se encaixe no trabalho e não o contrário. 

Temos sido educados ao império da servidão, conforme nos provoca a pensar o título do livro de Ricardo Antunes. Uma servidão não ao trabalho, mas à uma lógica trabalhista que nos consome até a última gota de energia, que ocupa todo nosso tempo, que nos faz dormir pouco, comer mal, compromete a qualidade das nossas relações sociais, não nos permite sequer termos tempo para nós mesmos ou mesmo para perceber que precisamos  disso. 

E ainda nos faz sentir culpa quando não estamos dando o máximo de nós – aliás, esta é uma máxima à que gostaria de voltar, porque penso que deveríamos problematizá-la em nome do nosso próprio bem-estar, já que dar o máximo de nós para alguma coisa – neste caso, ao trabalho -, compromete todas as outras áreas da nossa vida, que ficarão sem nada. 

Este é um raciocínio simples baseado em uma lógica matemática. Dar o máximo de si para alguma coisa tem, pelo menos, duas consequências diretas: a primeira é que, por uma questão lógica, vai fazer falta às outras coisas as quais você também precisa e/ou quer se dedicar; a segunda é que, na tentativa insana de sugar de onde já não há mais, vivemos na exaustão. E, então, ficamos doentes física e mentalmente. 

É isso que temos nos tornado: uma sociedade doente. Temos tantas doenças que nem percebemos, porque as estamos naturalizando. E quem não as naturaliza e se queixa, resiste ou se nega a manter esse ritmo é visto como fraco ou incapaz e, assim como no reino animal, é deixado para trás pelo bando ou devorado por ele. A diferença é que somos humanos, e pensamos ser melhores que os animais. 

A cruel pedagogia do vírus, como já discutiu Boaventura Sousa Santos, em importante ensaio publicado no ano passado no auge da pandemia, vem nos ensinando muitas coisas sobre a necessidade de repensar e alterar nossas formas de ser e estar no mundo, considerando que a normalidade que nos trouxe a esta crise também nos levará a tantas outras se não repensarmos nossas práticas.  

E é aí o ponto em que ela se torna pedagógica, a meu ver. Somos forçados a pensar sobre essa suposta normalidade da vida para a qual muitos de nós anseiam voltar e, nesse movimento de reflexão, não podemos desconsiderar seus efeitos: estamos há quase um ano em isolamento social, tivemos cerca de 250 mil mortes, estamos exaustos, esgotados, doentes física e mentalmente, perdemos e recuperamos a esperança muitas vezes no meio do caminho, mas resistimos e seguimos em frente por nós e pelos outros. 

Esse modo de viver tem se mostrado problemático, de muitos modos, e vem esgotando todos os nossos recursos, tanto no sentido macro como micro. Estamos todos no limite: o planeta, a sociedade e os indivíduos. 

Ao invés de naturalizar os novos códigos que se impõem, ainda mais perversos do que os anteriores porque as práticas exploratórias estão cada vez mais refinadas, precisamos frear nossos próprios impulsos de seguir a onda dos novos tempos e refletir onde essa maré nos leva. E esse curso não nos leva a um lugar melhor. 

Durante os piores momentos dessa pandemia, recorremos a diferentes estratégias para manter acesa a nossa coragem. Alguns vão dizer que o trabalho ajudou, mas, sem dúvida, o que tem nos ajudado são os pequenos momentos em que, burlando o trabalho e o vírus, alteramos ainda que minimamente este curso. Foi quando nos permitimos parar para apreciar, mesmo que por instantes, pequenas belezas que nos fazem suspirar, foi quando nos forçamos a nos exercitar porque percebemos que temos um corpo que começou a gritar por cuidados, foi quando nos envolvemos de modos distintos com cuidados na direção de outras pessoas que recuperamos o fôlego para continuar. 

Não por acaso nos referimos a esses momentos como um “respiro”. Quando paramos e deixamos de agir como máquinas, suspendemos o tempo e o trabalho burocratizado, e atentamos para o que está à nossa volta e para o que nos é realmente caro, nos sentimos vivos. Respiramos. E continuar respirando é tudo que queremos no meio dessa pandemia, para nós e para os outros.

Literalmente, essa é a grande ameaça do vírus, mas, alegoricamente, essa é a grande ameaça da vida que nos trouxe a essa crise de tantas faces. E que lições vamos tirar de tudo isso? 


Imagem de destaque:  mrkaushikkashish / Pixabay

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