Entre higienistas e negacionistas: odiosas comparações

Pablo Pérez Navarro1

A pandemia de covid-19 começou, para mim, pouco depois de ser contratado como professor visitante estrangeiro na Universidade Federal de Minas Gerais. Mau momento para conhecer o Brasil! Sem dúvida. Porém, às vezes me digo como consolo: o contexto pandêmico na Espanha não tem sido muito mais tranquilo. De fato, os índices de mortalidade da Espanha estiveram à frente dos números do Brasil até bem depois de finalizado o primeiro ano da pandemia, quando as medidas não farmacológicas de contenção cederam o protagonismo às respectivas campanhas de vacinação2. Por ter transitado entre ambos os contextos – para trabalhar na UFMG, primeiro; para me despedir do meu pai em Tenerife, depois –, sei bem que as pessoas sensatas de ambos os lados do oceano costumam atribuir, intuitivamente, essa relação entre mortalidades à subnotificação de óbitos no Brasil. Pois bem, seria isso realmente assim ou tratar-se-ia apenas de uma saída simples ante uma comparação que resulta odiosa para a crítica de esquerda de ambos os países? 

Pelo que tenho podido conferir desde o despreparo epidemiológico de minha formação como filósofo, os estudos acadêmicos costumam situar a subnotificação da mortalidade no Brasil em torno de trinta ou, inclusive, quarenta por cento. Uma porcentagem muito significativa, sem dúvida, mas em tudo semelhante à que o Instituto Nacional de Estatística calcula para o caso da Espanha. Os dados sobre o chamado “excesso de mortalidade” – outra forma imprecisa, mas necessária, para comparar entre si diferentes impactos pandêmicos – apontam, por sua vez, para a mesma direção: recentemente, o Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde3, da Universidade de Washington, determinava que o Brasil só teria atingido a mortalidade pandêmica da Espanha no último mês de junho. Contra todos os prognósticos, portanto, e apesar de todos os fatores estruturais que colocavam o Brasil em desvantagem, fica cada dia mais seguro afirmar que era menos perigoso enfrentar as primeiras ondas da pandemia sob o mandato do negacionista Bolsonaro do que fazê-lo sob o da coligação de esquerdas que administrou um dos confinamentos obrigatórios mais estritos da Europa. 

Deixem-me esclarecer logo: não considero que essa comparação fale a favor do desgoverno neoliberal em tempos pandêmicos. Sem dúvida, muitas vidas poderiam ter sido salvas com medidas voltadas especificamente para a proteção das populações mais vulneráveis, entre as quais, nada casualmente, se incluem a população negra das periferias urbanas e a indígena, sobrerrepresentadas ambas nas cifras de mortalidade. Considero, porém, que comparar pode contribuir para relativizar o desejo que suscitam as mais higienistas e punitivistas políticas de mitigação numa parte importante das esquerdas espanholas e brasileiras, evidenciando que poderia ter sido igual ou, ainda, mais devastador importar ao Brasil os estritos confinamentos obrigatórios de estados como o espanhol. Lembremos apenas que este impôs o confinamento em todo o território durante mais de dois meses sem previsões para pessoas com vulnerabilidades específicas, incluindo crianças, pessoas sem condições mínimas de habitabilidade e convivência, doentes crônicos – como meu próprio pai e seu irmão, muito mais novo, que enterramos no mesmo dia por complicações decorrentes do confinamento. E ainda: tal política foi sustentada por meios puramente repressivos, como o aumento da pressão policial nos bairros operários e migrantes e a imposição de mais de um milhão de multas sob o amparo de uma lei concebida para o controle do protesto social e cuja reconversão em dispositivo biossecuritário tem sido objeto de intensa preocupação por parte das organizações de defesa dos direitos humanos.

No fim das contas, as mais importantes lições que se podem extrair dos contrastes e similitudes entre ambos os contextos não procedem precisamente do âmbito das políticas públicas, mas da resistência às mesmas nas margens raciais, sexuais e de gênero das múltiplas pandemias que ameaçam os nossos projetos de resistência coletiva. Resultam fundamentais, nesse sentido, as lições do movimento Vidas Negras Importam, que cruzou as ruas desertas das cidades brasileiras com escassa solidariedade branca, tal como o fizeram os migrantes africanos retidos ilegalmente nos acampamentos nas Ilhas Canárias após a intensificação da vigilância das fronteiras da Europa como resultado das novas normas de segurança sanitária. Igualmente exemplar resultou a ocupação das ruas de Belo Horizonte pelas trabalhadoras do sexo, muitas delas travestis, para reclamar o seu reconhecimento como grupo prioritário para a vacinação, de maneira muito similar ao que fizeram em Sevilha para denunciar sua exclusão de todas as proteções laborais previstas para o estado de emergência. Sem se esquecer, de volta às margens migrantes e racializadas da pandemia, das marchas dos motoboys entregadores de comida em cidades como São Paulo ou Madri, em luta contra a extrema precarização laboral em que se sustenta boa parte das políticas de isolamento social. Nem, finalmente, do caminho aberto pelo acampamento indígena Luta pela Vida, que disputou na capital federal o espaço do protesto – e o simbólico da nação – frente aos ônibus e caminhões da extrema-direita. 

O que essas e outras lutas nos ensinam é que, no final, a resistência tem razões que a submissão não entende. A despeito, da mesma forma, das entusiastas dos “e daí?” e da confusão crescente entre as políticas de saúde e as biopolíticas da ordem pública.

 

1 – Pesquisador do Centro de Estudios Sociales (CES) da Universidade de Coimbra e Professor visitante da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

Notas:

(1) Segundo os dados da Organização Mundial da Saúde a mortalidade por milhão de habitantes reportada na Espanha teria estado na frente em relação ao Brasil durante a primeira onda de ambos os países, e manteve essa posição ao longo de sua segunda, terceira e quarta ondas, durante as quais a diferença foi diminuindo até que a do Brasil ultrapassou a de Espanha entre os dias 5 e 12 de abril de 2021.

(2) Institute for Health Metrics and Evaluation.


Imagem de destaque: Bicanski

 

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