Entendeu ou quer que desenhe?

Laíla Sampaio Lima1

Que a nossa sociedade contemporânea está cada dia mais visual, creio não termos mais dúvidas. Que a imagem tornou-se construtos de mentiras e verdades outras, circulantes em nossos dispositivos móveis, creio também ser um denominador comum. A chamada “sociedade imajada”, termo cunhado pelo sociólogo Maffesoli (1995) ressoa neste mundo cada vez mais visual, impactando em nossas relações e formas outras de compreender as coisas através de discursos visuais. Estamos diante do fenômeno da Cultura Visual: produção imagética popularmente acessada através de dispositivos móveis conectados e aceleradamente consumida por todos nós.

Imagens produzidas e disseminadas chegam em nossos perfis nas redes. Compartilhadas, provocam sensações que variam de acordo com as suas intencionalidades autorais, nem sempre garantidas. Afinal, como dominar as polissemias que a imagem evoca? Como garantir um teor crítico de consumo visual diante de um oceano semântico no qual podemos surfar ou naufragar? Essa tendência chama atenção para um momento peculiar: como ler as imagens? O que nos dizem sobre o mundo, as pessoas e os comportamentos humanos? O que falam sobre mim? O que não falam?

A escola é, de longe, espaço formacional para oportunidades emancipacionistas onde a crítica deve se fazer presente, sobretudo enquanto ato político. O direito à dúvida, ao contraditório, ao encontro com a diferença e a diversidade fazem deste espaço social potência construtiva de debates onde a imagem possa ser atravessada em suas rotinas. Nesse quesito, os docentes têm papel decisivo em um exercício de curadoria constante: mediação, articulação e autoria para o trato pedagógico imagético. 

Não podemos confundir esta postura com qualquer aproximação da ideia de “doutrinação”, irresponsavelmente disseminada por grupos da extrema direita. O que defendemos aqui é uma ação docente responsável e diretamente vinculada aos princípios que norteiam uma educação baseada em pressupostos éticos, afetivos, problematizadores e principalmente de justiça social. Desta forma, tencionamos que a Cultura Visual e seus desdobramentos enquanto construto de narrativas e discursos torna-se palco de possibilidades pedagógicas outras que envolvem contextos contemporâneos profundamente experienciados por todos nós na cibercultura. 

Essa nova perspectiva que a Cultura Visual nos apresenta se debruça sobre  a produção imagética que, disseminada através das redes sociais, volta-se para demandas que clamam por um debate amplo sobre as desigualdades sociais em todo o mundo. A imagem torna-se centro de debates amplamente difundidos por grupos silenciados e excluídos. Questões que historicamente os movimentos sociais denunciam e problematizam, chegam às mídias através de imagens impactantes que nos fazem pensar sobre o nosso papel na luta por uma sociedade menos desigual.

Temáticas que envolvem o campo da educação, da saúde pública, da diversidade, da diferença, da justiça e da igualdade fomentam no ciberespaço uma produção imagética produtora de sentidos para uma (trans)formação social. Nesse sentido, a Cultura Visual nos apresenta possibilidades de sentido denotativo e conotativo muito claros: construções imagéticas vinculadas às práticas culturais de sujeitos e suas  lutas sociais como forma de ação, contribuindo para uma tentativa de fratura das relações sociais de opressão.

Um fenômeno que nos faz repensar o contexto imagético na disseminação de valores e verdades por vezes duvidosas e/ou questionáveis. Dessa maneira, percebemos cada vez mais necessário um olhar crítico a esse momento em que a popularização e acesso a dispositivos tecnológicos na produção e consumo de imagens reverberam seu teor formacional nos espaços sociais. Há um destaque significativo nas redes globais que se pautam em criar, enviar e ver imagens de todos os tipos, desde fotografias até vídeos, arte e animações. E a escola não pode se ausentar desse debate tão significativo.

Um exemplo do impacto da Cultura Visual pode ser percebido com a morte de George Floyd. Dez meses depois do ocorrido, o policial Derek Chauvin foi condenado nos Estados Unidos. O vídeo mostrou para o mundo a barbaridade revestida de racismo, incendiando o movimento #blacklivesmatter nas redes sociais que pedia justiça por um homem negro que implorava para respirar. Tragicamente, parece-nos que a expressão “Entendeu ou quer que desenhe?” nunca fez tanto sentido para a nossa sociedade.

 

1Professora e pesquisadora do campo da Cultura Visual e Currículo. (FORMACCE – UFBA / CULT VI – UNEB). Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Email: laila.sampaio86@gmail.com

 

Para saber mais:

GOMES, Antenor Rita. As imagens nas configurações educativas contemporâneas. A perspectiva da Cultura Visual. Paco Editorial. 2020. 1ª ed. 142 p.

SARDELICH, Maria Emília. Leitura de imagens, Cultura Visual e Prática Educativa. Cadernos de Pesquisa, v.36, n.128, p.451-472. 2006.

SILVA, Sergio Luiz P. Gozo estético na cultura visual. Curitiba: Appris, 2020. 121p. 


Imagem de destaque: Singlespeedfahrer / Wikimedia Commons

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