EJA: dos pedaços-esperança em São Gotardo

Douglas Tomácio¹

Francisco da Silva Costa²

E foi de lá, dos cantos do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, que Apple (1989) nos veio. Sim, naquela escola, os exemplos contra-hegemônicos apresentavam uma luta concreta e bem-sucedida quanto ao que pode ser feito no agora. Repleta de sentidos em possibilidades imaginativas, opondo-se ao mórbido ceticismo e apatia que por vezes nos tomam nestes sombrios tempos, a EJA se assinava naquelas palavras discentes: “É uma aprendizagem que a gente vai levar pra vida até morrer. Vai fazer a gente viver bem, saber andar pelos lugares, saber conversar, ler tudo que vê pela frente… É algo bem gratificante pra mim. Tudo, tudo, mudou pra mim!” –  compartilhava a estudante mulher, negra, empregada doméstica, mãe solo de 4 filhos, e arrimo de família. 

Emocionados, e emocionando-nos, @s estudantes diziam acerca de um fazer-EJA relacional. Ancorado pelo interesse efetivo naquilo que são e no que consigo trazem, este constrói-se também nas arquiteturas corporais suas, cheias de poros e sonhos e forças a estruturar os enredos formativos de uma EJA pública municipal. Um salve à escola pública!   

Em cena, a compreensão do processo como uma totalidade inacabada, isto é, sempre aberta às possibilidades do acontecimento-educação cotidiano, ainda que mais desafiador seja em contextos de pandemia. Mutuamente tecendo as processualidades do espaço escolar, anunciavam a boniteza de fazê-lo ao passo que, enquanto educandos, sentiram a potência de considerados ser em suas distintas temporalidades, cadências rítmicas, desafios históricos.    

Nas feições trabalhadoras, denunciantes da desigual história brasileira (Tamarozzi, Costa, 2009), jovens e adultos com trajetórias de trabalho, de vida, de luta por sobrevivência social e econômica demonstravam a força de um fazer implicado que tem considerado, como nos diria Arroyo (2007), os sujeitos concretos, em contextos concretos, com histórias concretas, sob configurações concretas: “Antes de vim pra escola, eu era uma pessoa parada. Tinha vergonha e não sabia conversar com as pessoas. Hoje, como a gente tá na regalia do povo, converso de boa. Já consigo também fazer compras no mercado e ir até o posto de gasolina.’’. Feliz, disse-nos o trabalhador rural, negro, de 55 anos. 

Nesses cantos de escola em São Gotardo, a EJA tem-se configurado como modalidade para a construção de uma sociedade justa, em que pessoas historicamente excluídas do espaço escolar brasileiro podem agora acessá-lo e, a partir disso, mudar a realidade de suas vidas. É a EJA que, conforme destacou Freire (2000), se orienta a partir do “[…] respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando (…)”, a qual, coerente com a luta que lhe cabe, coloca-se no sentido de fundamentar “(…) uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo.”.

E isso se dá na evidência do compromisso ético-político com a classe trabalhadora que expressa os educandos da EJA. Conhecê-los, partilhar de suas vivências, problematizando-as, é disponibilizar-se para o diálogo e promover um percurso de ensino-aprendizagem que considera as dúvidas, inquietações, a realidade sociocultural, as jornadas de trabalho, as condições emocionais, enfim, a transformação; como tão bem nos disseram Santos, Pereira e Amorim (2018). 

É EJA à luz de Freire, aquela que se constitui enquanto espaço para tomada de consciência crítica e superação de uma consciência ingênua. Enredo a dizer dos fazeres concretos de educadores que, junto a seus educandos e nos mais variados cantos, batalham por este Brasil. Mesmo que vilipendiados e sangrando as tantas omissões e retrocessos das ações governamentais hodiernas, permanecem e insistem por uma educação pública, gratuita e de qualidade social para tod@s. 

São sujeitos a espalhar e materializar sonhos, a nos fortalecer em esperança (esperançar) pelo compromisso político que assumem quanto ao educar. É, enfim, contexto a nos dizer que “ainda que tenhamos morrido no ano passado”, neste ano não morreremos3”. Porque, sim, é como nos têm ensinado esses pedaços de São Gotardo: “Tudo, tudo, mudou pra mim!”, e mudará para nós. 

 

1 –  Historiador, Pedagogo. Professor do Departamento de Educação e Ciências Humanas (DECH) e da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Professor do Instituto DH – Pesquisa, Promoção e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania. E-mail: dtlmeduc@gmail.com

2 –  Professor, Poeta. Estudante do curso de Pedagogia do Centro de Ensino Superior de São Gotardo. E-mail: joabe2018joabe@gmail.com

3 – Trecho construído em referência à canção “Sujeito de sorte”, de Belchior. 

 

Para saber mais
APPLE, Michael W. Educação e poder. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

ARROYO, M. Balanço da EJA: o que mudou nos modos de vida dos jovens-adultos populares? REVEJ@ – Revista de Educação de Jovens e adultos, v. 1, n. 10, p. 5-13, ago. 2007.

FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. 4. ed., São Paulo: Editora Unesp, 2000.

SANTOS, J. S.; PEREIRA, M. V.; AMORIM, A. Os sujeitos estudantes da EJA: um olhar para as diversidades. Revista Internacional de Educação de Jovens e Adultos, v. 1, p. 122-135, 2018.

TAMAROZZI, Edna.; COSTA, Renato Pontes. Educação de Jovens e Adultos. 2 ed. Curitiba: IESDE BRASIL S.A., 2009.


Imagem de destaque: Secretaria de Educação Maringá

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