Educação e Memória

Flávio Alves Barbosa¹

Águas passadas movem moinhos. Leitor, fique tranquilo, não está faltando nada na frase que abre este texto. Recordo, de início, o que escreveu James Joyce “o passado não só não morreu como ainda não passou”. Com as águas passadas, os moinhos aprenderam a se mover. E as águas que passam abrem caminhos para as novas águas. E assim os moinhos mantêm vivo o seu movimento e sua força. As águas passadas foram um dia águas do presente. E é nessa dialética entre presente e passado, que a memória enraíza a educação no chão do vivido e a põe a caminho para gerar o futuro. 

A memória são águas que movem e dão sentido à existência da educação. Fazer memória é lembrar o que a educação deve ser, dizer, viver e o que não deve voltar a acontecer. A memória não deixa submergir o vivido. Ela o mantém aflorado.  Mas, não somente no sentido de estar na superfície, e sim de estar aberto, viçoso, para ser refeito, reconstruído e repensado, a partir de tudo que acontece nos dias de hoje.

Educar e deixar-se educar pela memória é perguntar pelas razões de tantas ausências, silêncios, submissão e dominação, que acabam por estabelecer formas de existir esvaziadas de sentidos. Não só perguntar, mas trabalhar para acessar a verdade. E, a partir dela, promover a reconstrução. Memória e verdade são fundamentais para a educação promover possibilidades de se escapar das narrativas estabelecidas, que aprisionam ao conformismo e a um futuro incerto. 

A memória é, para educação, simultaneamente, uma força subjetiva e objetiva. Ela não coloca em movimento somente o sujeito em sua interioridade. A memória reconfigura, ressignifica, o contexto e as relações onde se vive a educação. Portanto, é fundamental educar para o direito à memória. Exercitar esse direito é trabalhar para que crimes como os de Mariana, Brumadinho, não se repitam. É trabalhar para que homens, mulheres e crianças, não sejam mais traficados e escravizados. 

Neste sentido, a memória impulsiona a educação a pensar e agir contra o esquecimento, com o objetivo investigar e dar visibilidade às históricas e presentes violações de Direitos Humanos e às estruturas que as possibilitaram e ainda as mantêm atualmente. A memória leva a educação a instaurar um processo de educação em Direitos Humanos, a promover coletivos que estão comprometidos com a promoção e defesa da verdade e dos Direitos Humanos sociais, econômicos, políticos, ambientais e sexuais. Memória e pensamento são irmãs gêmeas.

Outra dimensão importante dos laços entre educação e memória, é que libertam a educação do aprisionamento ao imediato e à fragmentação, muitas vezes apresentado a nós com a mesma força encantadora do canto das sereias na Odisséia, de Homero. Um exemplo de canto sedutor das sereias é o discurso dos agentes educacionais financiados pelos banqueiros ao apresentar para a sociedade uma proposta de educação fragmentada em competências, habilidades cujo cordão umbilical está preso ao mercado de trabalho. Então, quem alimenta essa educação são os interesses dos empresários e banqueiros. Eles talvez até falem de memória, mas o farão transformando-a em mercadoria atrelada a uma competente assepsia para retirar-lhe a sua dimensão subversiva. 

Memória não subversiva é apenas registro oficial dos acontecimentos a serviço dos interesses de quem está no poder, é um exercício de produção da amnésia. É um ato que se reduz cerimônias pomposas, pura perfumaria, cuja finalidade é simplesmente falar sobre, para não ouvir a palavra de homens e mulheres que não puderam e continuam impedidos de aparecer na história pronunciando a sua própria palavra.

Um caminho para lutar no campo da educação contra toda assepsia e esvaziamento da memória é nos amarrar ao mastro do direito à verdade, discernir e escutar, sob o som dos estrondosos fogos, os gemidos, clamores e a palavra das vítimas de todos os tipos de violação.

Para não concluir, é importante dizer que a memória fecunda a educação quando esta se põe e se desafia a pensar as relações de poder nas histórias de ontem e de hoje, a fim de tornar possível na história o que foi dado como historicamente impossível. A memória é a condição de toda educação.                       

 

1Cientista social, educador popular e professor da Universidade Estadual de Goiás.


Imagem de destaque: Colagem / Ibama e b0red 

                                                                                                         

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *