Educação e Direito: um passeio pela literatura.

Joaquim Márcio de Castro Almeida

A obra de Franz Kafka é repleta de contos e romances que se desenrolam num contexto ditatorial, no qual não se tem um processo como garantia; senão, apenas, como simples instrumento da justiça, manejado por um distinto grupo de pessoas, pretensiosamente sábias e equânimes: acima do bem e do mal. 

No famigerado conto “Diante da Lei”, Kafka narra a história de um humilde camponês que, ao tentar entrar na casa da Lei, depara-se com outro homem de vultosa compleição, que o impede de cumprir seu desiderato. Esse homem, possuidor de força descomunal, lembra esse fato ao pobre campônio, acrescentando, ainda, que é apenas um dos guardas da Lei; por sinal, bem mais fraco do que os demais que se sucederão no caminho do camponês, caso este obtenha a inacreditável façanha de passar de passar dali. Nessa metáfora, o conteúdo normativo da lei é inatingível pela pessoa comum. Somente alguns têm acesso a ele. Esses são chamados “os guardiões da lei”.

Era essa a postura adotada pelo oficial encarregado de aplicar as torturas seguidas de execução realizadas na Colônia Penal, por meio de uma engenhosa máquina, cuja idealização e fabricação eram atribuídas ao saudoso “Comandante”, de quem o oficial havia “herdado” o seu ideário de justiça. Na Colônia Penal, não havia propriamente um processo na acepção técnico-jurídica-democrática. Havia, sim, lado outro, apenas acusação e sentença. Mutatis mutandis, o processo era o meio ou instrumento de realização de uma pretensa “justiça”. E o oficial orgulhava-se disso. Segundo ele, nesse tipo de processo, não havia risco de surgir inconveniente algum produzido pela defesa. Destarte, seria possível a obtenção de uma sentença em espaço de tempo bem mais curto. 

O corpo do aludido Comandante, mentor do sistema penal e processual penal adotado na Colônia, fora sepultado sob o chão de uma antiga confeitaria por seus leais partidários. É que o padre daquela comunidade havia lhe negado um lugar no cemitério. Na lápide de sua sepultura, via-se, em letras miúdas, a seguinte inscrição: “Aqui jaz o antigo Comandante”. Seus partidários, que devem ser já incontáveis, cavaram esta tumba e colocaram esta lápide. Uma profecia diz que, depois de determinado número de anos, o comandante ressurgirá, e desta casa conduzirá seus partidários para reconquistar a colônia. Crede e esperai!”

Já se disse alhures que Kafka era um profeta entre o seu povo. E, de fato, algumas décadas após sua morte, o Nazismo e seu consectário holocausto foi instaurado na Alemanha Hitlerista. Ao que parece, o “comandante” ressurgira tal como fora profetizado: alguém com o poder de dizer o conteúdo da Lei e o rumo que o povo deveria seguir. Nas sociedades democráticas, contudo, não há espaço para um comandante, líder ou juiz que julga de acordo com a sua compreensão solitária de justiça. O juiz não é o Führer dentro do processo, como diria Couture, na era do nazismo.

No processo Kafkiano, a história não é diferente. Josef K., o protagonista da trama, fora acordado logo cedo em seu quarto por dois investigadores que o informaram sobre sua detenção. Não lhe fora esclarecida qual acusação pesava sobre ele e, se não lhe era dado conhecer o inteiro teor da acusação feita em seu desfavor, não lhe restava nenhuma oportunidade de defesa. O drama segue recheado de uma sequência de arbitrariedades levadas a cabo por aqueles que se diziam os juízes do caso. Ao final, Josef K. é condenado e morto, “como um cão!”. Aqui, novamente, o processo é visto como simples instrumento nas mãos dos juízes que dele se valem para realizar a “justiça” no caso concreto, e as consequências dessa postura são sempre as mais nefastas possíveis.

Vale lembrar que, ao pronunciar-se a palavra “justiça”, pensa-se logo em Ulpiano, eminente jurisconsulto romano que, abeberando-se na fonte de Platão, garbosamente advertia: “A justiça consiste em dar a cada um o que é seu”. Na República de Platão, era essa a definição de justiça apresentada por Polemarco, um dos discípulos de Sócrates. Naquele cenário, o sofista Trasímaco, um dos opositores de Sócrates, em dado momento, lançava o desafio: “A justiça é o interesse do mais forte, ou seja, do governante”, ao que Sócrates opunha uma nova pergunta: “Mas os governantes são absolutamente infalíveis, ou estão sujeitos a errar por vezes?” Trazendo essa indagação para o âmbito do Processo, a resposta é positiva para a segunda parte da pergunta; os julgadores são falíveis, por certo. Contudo, a possibilidade de erro será infinitamente menor se os afetados pelas decisões jurisdicionais puderem participar de sua construção em um “espaço argumentativo procedimentalizado”, marcado pela observância das garantias processuais constitucionalizadas, conquistadas. Aqui no Brasil, vale sempre lembrar, à custa do sangue e do sofrimento “[…] de tanta gente que partiu num rabo de foguete […]”. 

 

Sobre o autor

Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da PUC/MG. Mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Advogado. E-mail: joaquimmarcio@hotmail.com

 

Para saber mais

ALMEIDA, Joaquim Márcio de Castro. Emendatio libelli in pejus: a desconstrução de um mito a partir da compreensão da jurisdição no Estado Democrático de Direito. Brasília: Revista da OAB-nº88, JAN/JUN 2009.

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Processo Civil. Buenos Aires: Depalma, 1977.

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia (entre facticidade e validade). v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b.

KAFKA, Franz. Diante da lei. In: A Colônia Penal. Tradução de Torrieri Guimarães. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

KAFKA, Franz. A colônia penal. In: A Colônia Penal. Tradução de Torrieri Guimarães. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2003.


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