Educação bilíngue: razões e contrarrazões

Rafael Muller

Em Aria: A Memoir of a Bilingual Childhood, Richard Rodriguez defende seu posicionamento contrário à educação bilíngue, considerando-a uma mixórdia de educadores modernos baseada no simples argumento de que alunos estrangeiros perderiam ao serem ensinados em língua diferente da sua original. Sua contra-argumentação é sustentada em suas memórias de infância bilíngue, apresentadas na obra ora analisada.

O texto trata-se de um ensaio autobiográfico em que elementos da memória infantil são resgatados juntamente às argumentações em contrário à educação bilíngue. Em linhas gerais, Richard Rodriguez esclarece que sua formação, em decorrência da infância bilíngue, deu-se com clara separação entre uma língua-identidade pública (em inglês) e uma língua-identidade privada (em espanhol), por ser um americano filho de pais mexicanos radicado nos Estados Unidos. Em suas recordações de seis a oito anos de idade, predominantemente, remonta o período pré e pós intervenção da escola na língua falada em sua família: antes, falavam espanhol em casa e inglês em público; após sugestão das educadoras, passaram a adotar o inglês em casa para que a criança-Richard aprendesse o idioma mais facilmente. 

Duas mudanças – uma perda e um ganho – foram notadas e destacadas no texto: como perda, o arrefecimento do clima de acolhimento a aconchego do lar, cujas conversas positivamente acaloradas deram espaço a silêncios e conversações tensas pelo arranhar do idioma; como ganho, o marco do fim da infância e a inserção social pela aprendizagem da nova língua, superando a barreira existente que o marcava como estrangeiro, despossuidor de direitos e vida social e política.

Há sérios motivos para suspeitar da argumentação construída por Rodriguez. O mais imediato decorre da visão orientada à escassez – uma “teoria do cobertor curto” – em que todo ganho corresponderia necessariamente a uma perda. Outro decorre da ideia idealizada de efetivo pertencimento à sociedade receptora, através da participação na vida pública e política, uma ideia alicerçada num individualismo claramente estadunidense.

Subjaz à orientação à escassez uma proposta perversa: de que tudo é valorável (ou, em casos mais extremos, monetizável). Para que se possa chegar a uma conclusão racionalista – argumentativa – a respeito dos ganhos e perdas de modo comparado, método aplicado pelo autor para seu posicionamento, é necessário, antes, valorar objetos e fatos do mundo. No exercício aplicado por Richard, o acalanto familiar fora valorado como menor ou menos importante que a superação do rótulo “estrangeiro” que lhe era imposto. Em nenhum momento é considerada a hipótese de que a superação desse rótulo possa se dar por outras vias, que não a desistência do aconchego familiar. Isso nos leva ao segundo motivo para suspeitar da argumentação: o individualismo versus o coletivismo.

Ora, a remissão à desistência do aconchego familiar só é uma solução individualista – e, por isso mesmo, frágil – para a superação do rótulo. No plano coletivista, a verdadeira inclusão multicultural de toda a categoria de estrangeiros à sociedade norte-americana permitiria o mesmo resultado: a superação da subalternidade e o ganho de direitos políticos e reconhecimento cultural, sem se abrir mão daquilo que há de mais personalíssimo no ser humano: suas relações sociais e interpessoais.

Afinal, se o ser humano é por excelência social, que superação de barreira cultural é essa que, para ser superada, exige do outro que abra mão da naturalidade e espontaneidade de suas relações? A própria noção de “ganho” de Rodriguez parece, pela leitura deste excerto, enviesada pela marca individualista estadunidense a tal ponto que qualquer solução coletivista que priorize a liberdade e a autonomia individual com espontaneidade seja aprioristicamente desconsiderada.

Num plano mais intimista, reconhece-se esse desvio argumentativo pelo recurso ao fim da infância: “Uma vez que aprendi a língua pública […] minha infância começou a terminar” (RODRIGUEZ, 1996, p. 7). O valor da infância e o valor daqueles elementos que marcaram a sua noção de infância são, derradeiramente, subtraídos. A isso só se pode valorar positivamente sob o viés da escassez e do individualismo.

Por todo o exposto, parece-nos mais válida a “mixórdia” da educação bilíngue: não tanto em relação à ideia simplista de “aprender melhor”, mas pela valorização das relações humanas autênticas. Está em causa objetivo-ele-mesmo da educação: será ele o de aculturar, castrar, modelar e padronizar seres humanos para a “função política” denominada Trabalho? Ou a de criticar esse status quo individualista e promover a liberdade com espontaneidade, a igualdade na diferença e a fraternidade com comunhão coletivista?

 

Para saber mais
RODRIGUEZ, Richard. Aria: A Memoir of a Bilingual Childhood. In: Diverse Identities. James. D. Lester (Ed.). Lincolnwood, Illinois: NTC, 1996.

 


Imagem de destaque: Pxfuel

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