Des-colonizar para desnaturalizar: reflexões sobre epistemicídio eurocêntrico na educação brasileira

Matheus Crivelari Fortes1

Gabriela Iamara Lupianhe Pereira2

Você se lembra como sua professora ou seu professor de história o ensinou sobre a história do Brasil? Mais especificamente, sobre a história de uma terra que foi “descoberta”? Sobre a história de uma terra virgem, habitada “apenas por um povo selvagem”, que em 22 de abril de 1500 foi “descoberta”, ocupada e “civilizada” pelos heroicos homens portugueses que lançados em suas caravelas arriscaram suas vidas nos mares em nome da perpetuação de uma suposta civilização balizada nas ideias de progresso e evolução da humanidade? Pois bem. Eis a questão: como um território já habitado por outros povos, pode ter sido “descoberto”?

Na versão digital do dicionário da língua portuguesa (Porto Editora) a palavra “descobrimento” tem como significado: “ato ou efeito de achar algo desconhecido, ignorado ou escondido”. No entanto, o que está escondido e que pouco foi descoberto são os processos que estão escamoteados por trás da expressão “descobrimento do Brasil”. Expressão que foi incorporada e naturalizada não só no vocabulário de professoras, professores e estudantes, mas também no de nossos familiares, amigos, colegas e desconhecidos, que reproduzem essa expressão cotidianamente sem pensar muito bem no que está nas entrelinhas desse suposto processo de descobrimento. 

Dizemos suposto porque acreditamos que não se trata de um descobrimento, visto que nossas terras já eram ocupadas por centenas de milhares de habitantes de diferentes etnias. Trata-se, antes de tudo, de empreendimentos europeus coloniais imperialistas, que visavam expandir suas riquezas, seus territórios, sua produção e suas rotas de comércio a todo e qualquer custo, de toda e qualquer maneira.

A história do Brasil que nos é contada e ensinada nas escolas, por muitas vezes, omite o genocídio dos povos nativos que habitavam terra brasilis. Ailton Krenak, pensador indígena do povo Krenak, nativo das margens do Rio Doce, na tarefa de acabar com a história única, assumiu a missão de ampliar as vozes dos povos da floresta. Nos conta que antes da invasão dos colonizadores europeus e a invenção da américa latina, cerca de 8 a 40 milhões de indígenas viviam nessas terras. Pertenciam a aproximadamente mil diferentes etnias, habitavam diferentes territórios, falavam diferentes línguas e tinham seus próprios costumes e rituais. 

Ao contrário do que é presumido no contexto das escolas, a população indígena não era homogênea. Segundo Krenak, antes da invasão europeia, existiam em terra brasilis, povos com pelo menos 2 mil anos de história, como os Guarani. Estudos apontam para a existência de povos ainda mais antigos, com cerca de 4 mil anos de compreensão de si. Sociedades de diversas etnias viviam em diferentes territórios, se relacionavam entre si e formavam organizações complexas, plurais e estratificadas. Além disso, estima-se que aproximadamente 5 milhões de africanos foram forçosamente trazidos para terra brasilis para trabalhar na colônia como escravos e, a partir de 1620/1630, negros africanos passaram a ser maioria da mão-de-obra escravizada nos engenhos.

A chegada dos colonizadores pode ter sido considerada mais uma diferença entre tantas já existentes na vida dos povos africanos e ameríndios. Mas o homem branco europeu, com a intenção de assaltar para expandir seu poder e capital financeiro, viu nesse encontro com desconhecidos a possibilidade de explorar, expropriar e escravizar. Desde o século XV até os dias atuais, etnias inteiras vêm sendo dizimadas pela lógica de dominação colonial eurocêntrica. 

Assim, a partir do contraste apresentado através de perspectivas des-coloniais propostas por pensadores do sul global, podemos afirmar que nosso modelo educacional é predominantemente eurocêntrico e, portanto, epistemicida. A origem mitológica do Brasil leva brasileiras e brasileiros a enaltecer sua descendência europeia. Nosso modelo de educação nos ensina sobre a história européia, nos conta sobre gregos, romanos e anglo-saxões. No entanto, quem são os brasileiros? Pouco sabemos a respeito da história africana, indígena, árabe, judaica ou cigana que compõem a formação do Brasil. Se olharmos para nosso sistema de educação, onde estão esses povos? Não coincidentemente, essas pessoas são as maiores vítimas da discriminação social, já que suas histórias são apagadas pela ocidentalização e embranquecimento promovido pela política de miscigenação colonial. Eis o perigo de se contar uma única história, como nos alerta Chimamanda.

1Discente e pesquisador do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (PPGPSI-UEL) e integrante do grupo de pesquisa “Entretons: gênero e modos de subjetivação”. E-mail: matheuscrivelari90@gmail.com

2Discente e pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (PPGPSI-UEL) e integrante do grupo de pesquisa “Entretons: gênero e modos de subjetivação”. E-mail: gabriela.lupianhe@uel.br


Imagem de destaque: Oscar Pereira da Silva – Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, 1500, Acervo do Museu Paulista da USP.

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