Corpos Aprendidos

Sara Caumo Guerra¹

Raquel Carriconde (Edição)

Não é porque não lembramos de como aprendemos a comer com garfo e faca que devemos ignorar que um dia fomos ensinados a comer com garfo e faca. E se a utilização de objetos tão corriqueiros parece quase natural aos nossos sentidos de todo dia, isso nos indica que os sentidos de todo dia não só se fazem todo dia, reiteradores de si mesmos nas pequenas e grandes transformações. Se comer com talheres exige um aprendizado, como podemos ignorar que outras partes de nossos corpos também passam por muitos aprendizados? Seria o momento de voltarmos à “Técnicas do corpo”, texto de Marcel Mauss (1872-1950), não para resenhar, senão para mostrar o que faz funcionar um pensamento quando provocado.  

Sabemos, do ensaio mencionado, que as formas de nadar têm uma história e se as formas de nadar, os modos de conduzir braços e pernas, de respirar e de se deslocar entre a água são históricas, também o corpo o é. O corpo que nada, que come, também fode. O que nos estranha até hoje – no século das ficções científicas de outrora – é que aprender a comer, a nadar, a andar de bicicleta, a usar a privada, não provoque tanto o interesse de certos censores sociais quanto o aprender relacionado ao que podem certas partes do corpo envolvidas com o prazer. Se pode e se deve ensinar a comer com os talheres, mas não se deve falar dos arrebatamentos dos corpos, aqueles que vêm quando as pequenas mãos descobrem a si em exercícios de exploração típicos daquelas e daqueles que estão vivendo.  

E que horror falar de mãos que escorregam pelos corpos. Que horror colocar na mesma frase crianças e seus desejos. Que horror pensar sobre isso como se pensar sobre isso antecipasse a existência do fato. Pois o fato é que as crianças são habitadas pelo desejo e pela curiosidade sobre si mesmas, sobre seus corpos, sobre outros corpos. As mãos das crianças não podem ser amordaçadas como o foram outrora. Os canhotos do mundo sendo obrigados a estarem destros através do adestramento. Negando o fato até que ele exploda, ou melhor, que encontre explicações nos subterrâneos do discurso. Porque uma verdade, só mais uma entre outras, é que seres humanos buscam sentidos para o que lhes arrebata.  

Se a escola é impedida de ser uma produtora e multiplicadora de sentidos, para que ela está? Se aceitarmos que a disciplina é parte do trabalho escolar, de qual disciplina estamos falando? Voltamos para a instalação da fábrica de soldados onde deveríamos fazer aberturas? Se os corpos, e suas possibilidades de acoplamento, não podem ser pensados dentro do ambiente escolar, para onde irão esses corpos? Que disciplina irá conter um corpo que procura ligações? Deixaremos os corpos naufragarem na informação mais tosca sobre o que eles podem? Deixaremos a sexualidade ser descoberta num susto ou numa gravidez ou num casamento na adolescência? O que as crianças farão com seus corpos, especialmente aquelas já sexualizadas porque veem e ouvem gemidos não muito longe de si ou porque apertando um botão podem encontrar imagens de interações que ainda não podem valorar?  

Para que a escola não seja um lugar que ignore os corredores, pois sejamos diretas, alguém aqui já prestou atenção nos jovens durante os intervalos de aula? Se ainda não, por favor, não deixem de prestar. É ali que as descobertas têm seu território. Claro, não só ali. Mas ali, as pessoas ditas adultas, que devem também pensar o seu trabalho, podem acompanhar de perto os olhares. Se esses olhares não lhes disserem nada, professoras, professores, equipe diretiva, se esses olhares não forem do interesse de vocês, se esses olhares forem deixados somente para os pais e as igrejas, se esses olhares causarem mais pânico do que atenção, bem, vocês já declararam a derrota antes mesmo de entenderem os desafios.  

Quando a sociedade forma algo nomeado como opinião pública e essa opinião se manifesta na forma de tochas prontas para prender fogo nas novas bruxas do momento, se torna compreensível que afirmar a necessidade de se pensar nos corpos, para o caso das crianças e adolescentes, seja considerado um perigo. E como o perigo implica certa proximidade com aquilo que um grupo prefere manter à distância, se envolver com tais temas é também estar formando para si um corpo que pode ser tornado abjeto. Ninguém quer estar abjeto diante de seus contemporâneos. Ninguém quer estar abjeto por pretender discutir fatos delicados. Ninguém quer estar abjeto por idear fazer da escola um território aberto às discussões que envolvem as relações entre os gêneros, as formações das sexualidades.  

Abrir a escola para a atenção ao corpo, aos corpos, ao que os corpos manifestam em olhares, em empurrões, em grupos de cochichos, em piadas e xingamentos, em inscrições rupestres nas portas dos banheiros, em nomes circundados por corações sobre as mesas e nas folhas dos cadernos, em mensagens trocadas pelo telefone celular; abrir a escola para as perguntas que chegam dos vídeos pornográficos facilmente acessados pela internet não só por adolescentes, mas cada vez mais cedo por crianças; abrir a escola para o que o público escolar vive fora da escola, para o que escutam, enxergam, para os toques que desconhecem, para os toques que viram e mimetizam como se fosse algo não problemático, já que o adulto em quem confiam, assim o faz; abrir a escola para o que as crianças sabem e ainda não sabem sobre seus corpos e sobre os corpos dos outros é colocar a escola no lugar de segurança e não de moralização punitivista.  

A escola, por ser escola, já não é uma igreja e assim deve permanecer. Cada organização religiosa concebe o corpo de acordo com sua ontologia. A ontologia da escola não deve ser dada de antemão. É claro que a escola tem as suas tradições, as suas controvérsias. No caso do Brasil, pouco mais de um século de debates em torno de seus currículos, modelos didáticos, objetivos formativos, essas décadas de pesquisas antes de nos autorizar a entender a escola como fechada ao que acontece, deve fazê-la cada vez mais responsável por quem forma, como forma. Afinal, nas sociedades em que a escola, na sua diversidade, é uma realidade – nessas sociedades – a escola produz pessoas. E não pode ser menor que aventemos, nem que seja por um segundo de dúvida, que possamos formar pessoas sem ouvir o que dizem os seus corpos. Se as maneiras de dizer não são homogêneas, os modos de ouvir tampouco o são. Mas a atenção é um trabalho constante do qual não podemos prescindir.   

 Porto Alegre, 23 de novembro de 2021. 

1- Sara Caumo Guerra (1982) de Garibaldi, passou pela História Licenciatura e nas Ciências Sociais segue seus interesses em Porto Alegre.


Imagem de destaque: Sayyed Fadel

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