Considerações para uma escola afrontosa

Jardiael Herculano

Marcos Ribeiro Mesquita

Nas últimas duas décadas, vivenciamos um período de trânsito de valores sociais e culturais, sobretudo, relacionados às políticas educacionais, que têm pautado nas práticas de educadoras(es) questões relativas ao gênero e à sexualidade. Estas práticas buscam visibilizar as novas demandas da escola e da sociedade, além de promover uma formação abrangente, reflexiva e crítica. As discussões acerca dessas temáticas estão sendo feitas de diferentes maneiras e muito tem se falado sobre a relevância de novos currículos que se aproximem de demandas cotidianas e questões tracejadas por movimentos sociais, na luta por garantia de direitos de minorias. 

No entanto, ainda que resistam esforços e lutas travadas por uma educação mais inclusiva, participativa e democrática, um conjunto de ações produzido por grupos políticos e religiosos – responsáveis por pautar uma agenda conservadora no campo educacional no Brasil – tem conseguido eclipsar parte dessas conquistas, desmontando políticas públicas construídas a muito custo – concentradas no combate ao machismo e à lgbtfobia, bem como na diminuição das desigualdades de gênero e sexualidade. 

Dos projetos em torno de uma “escola sem partido” à construção de narrativas acerca do que foi chamado de ideologia de gênero; das disputas em torno do conceito de família à proposição de um currículo mínimo e tecnicista, as ações e estratégias produzidas pelos referidos grupos, atacam por todos os lados possíveis o projeto de educação construído coletivamente, produzindo consequências na continuidade das políticas da diversidade.

Historicamente, a escola se constituiu como um espaço marcado pelas diferenças de gênero e sexualidade, se atribuindo muitas vezes a responsabilidade de regulação dos corpos, deixando neles marcas expressivas e apontando como estes devem ser usados, incidindo não somente nas experiências das(os) estudantes, mas também de todas/os que nela atuam, constituindo ‘identidades escolarizadas’. 

Em 2016, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), apresentou os resultados da Pesquisa Nacional Sobre o Ambiente Educacional no Brasil, realizada com adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais sobre as experiências que tiveram nas instituições educacionais relacionadas à sua orientação sexual e(ou) identidade/expressão de gênero. De acordo com o relatório, 68% das(os) adolescentes e jovens já sofreram agressão verbal e 25% agressão física na escola em função de sua identidade de gênero; 56% destas(es) foram assediadas(os) sexualmente dentro do ambiente escolar. Além disso, 60,2% afirmaram se sentir inseguros/as na instituição educacional por causa de sua orientação sexual (ABGLT, 2016).

Os resultados confirmam o que as(os) adolescentes e jovens sentem no cotidiano das escolas brasileiras: todas(os) aquelas(es) que fogem à disciplina da instituição, passam a ser vistas(os) como transgressoras(es), monstros, anormais, não podendo pertencer a esse espaço, sem pagarem o preço por isso; assim são vistas as pessoas trans e travestis, as afeminadas, as crianças bichas e os corpos desbotados. 

Sendo a escola um campo de disputas que carrega uma marca histórica de práticas traçadas na confecção dos corpos, identidades e sexualidades, é ela também o espaço mais apropriado para a desconstrução de preconceitos e práticas lgbtfóbicas. Se nela encontramos diversas formas de relações de opressão no que diz respeito às questões do gênero e da sexualidade, é nela também que são produzidas redes de colaboração e construção de narrativas e políticas que promovem e tornam públicos esses temas. 

Nesse sentido, é imprescindível a ampliação de ações já existentes nas escolas, sendo elas a execução de projetos pedagógicos, projetos acadêmicos, tais como práticas extensionistas e de pesquisas; a consolidação de parcerias com diferentes grupos da sociedade civil, a transversalização do debate de gênero e sexualidade nas disciplinas e outras atividades, constituindo políticas de resistências. Além disso, é fundamental o apoio institucional do Estado para garantir a efetividade das práticas e projetos de combate às desigualdades e violências de gênero e sexualidade. Este conjunto de ações coletivas constrói e fortalece a rede de colaboração e tensiona os discursos conservadores que elegem a escola como um espaço privilegiado de suas orquestrações. 

Esse texto traz considerações iniciais sobre uma escola que nós chamamos de afrontosa, discutida na dissertação intitulada Gênero e sexualidade no cotidiano escolar sob a perspectiva de professoras e professores, mas também é um convite para reivindicarmos a partir dos nossos corpos, identidades e cores, a efetivação das políticas públicas que garantam a existência de uma escola afrontosa, democrática, participativa, que afirma as diferentes expressões de gênero e sexualidade.

1Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e integrante do Núcleo de Estudos em Diversidades e Política (EDIS).

2Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e Coordenador do Núcleo de Estudos em Diversidades e Política (EDIS).


 

Imagem de destaque: Sharon McCutcheon/Unsplash

 

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