Como a democracia chega ao fim

Cleide Maciel

Há pouco menos de dois anos, li ”Como a democracia chega ao fim” (David Runciman, tradução de Sérgio Flaksman. Editora Todavia, São Paulo, 2018), pela primeira vez. Um semestre depois, voltei a “folhear” o livro, novamente. Nos dois momentos, comecei a escrever alguns comentários, mas abandonei as iniciativas. Uma barreira parecia se colocar entre livro e leitora. A terceira “empreitada” destravou o nó produzido nas leituras anteriores. A tese fundamental do autor, resultante da analogia com a vida humana, expressa: a democracia é uma senhora de meia idade, portanto, está destinada a chegar ao fim, em algum momento! Prognóstico muito perturbador para quem acredita (acreditava?) no poder inesgotável dessa forma de governo. O título do Prefácio já anuncia: Pensando o impensável.

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Toda a argumentação de Runciman é produzida com a leitura muito qualificada dos autores/obras que escolhe para estabelecer seus diálogos e responder às questões que vai se colocando ao longo do livro. A densidade dessa leitura chama a atenção: não se trata de simples referência. Essas obras são comentadas no final, sob o título de Leituras recomendadas

A posse de Trump em 20 de janeiro de 2017, é o ponto de partida escolhido pelo autor. O Epílogo, igualmente, narra a posse do presidente dos Estados Unidos, num hipotético 20 de janeiro de 2053. Outros países são trazidos para exemplificação e comentários: Grã-Bretanha (país do autor), Grécia (da antiguidade e da era moderna), Japão, Turquia, China, Índia… O Brasil é citado no “minuto final”, com a eleição do presidente Bolsonaro.

O livro está organizado em quatro capítulos. Nos três primeiros, o autor apresenta os argumentos que reforçam a tese contida no título. Assim, os golpes (de Estado e outras modalidades), as teorias da conspiração, as catástrofes advindas de uma calamidade ambiental (nuclear ou de mudança climática), os medos que acarretam, a revolução tecnológica, são apresentados/problematizados como situações que “abalam” a democracia, colocando em dúvida o seu vigor. O quarto capítulo é destinado à indicação de algumas alternativas à democracia e às respectivas reflexões sobre elas.

Alguns argumentos merecem destaque. Ao tratar do tema da catástrofe, o autor a compara ao golpe de Estado. Quando o golpe acontece, é uma calamidade para a democracia, mas a vida continua. Já a catástrofe coloca em risco a vida de todos. Nesse momento, a luta pela vida se torna questão mais importante que a defesa de determinada organização política. Três temas/obras são citados como exemplo de catástrofes. Hiroshima (John Hersey), sobre a guerra/arma nuclear; Primavera silenciosa (Rachel Carson), sobre defensivos agrícolas (que, posteriormente, se desdobraria na temática das mudanças climáticas) e Eichmann em Jerusalém (Hannah Arendt), sobre o tema do genocídio.

No capítulo que trata do tema da revolução tecnológica, o Estado Moderno, representado pelo Leviatã de Hobbes, já não teria as empresas de navegação, do petróleo e as automobilísticas como as corporações ameaçadoras de seu poder. Hoje, tais corporações seriam representadas pelas gigantes da tecnologia: Facebook, Google, Amazon e Apple. Se o Leviatã de Hobbes tem a espada e pode obrigar pela força (poder coercitivo), a criatura de Zuckerberg tem o smartphone (poder conectivo). Os gigantes da tecnologia têm mais de dois bilhões de usuários, número muito superior à população de qualquer Estado. Entretanto, uma empresa como o Facebook não tem como praticar a democracia melhor que um Estado nacional. O espaço que separa sua retórica inclusiva de suas práticas excludentes é um verdadeiro abismo. 

No capítulo 4, o autor vai construindo os argumentos favoráveis e desvantajosos em torno das alternativas à democracia, como se estivesse movimentando peças num tabuleiro de xadrez, a partir de dois elementos que compõem a democracia moderna: a dignidade pessoal e os benefícios a longo prazo. A primeira alternativa seria o autoritarismo pragmático, e a China como referência. A segunda alternativa seria a epistocracia, o governo de quem sabe. A terceira, a tecnologia liberada. Segundo o autor, as duas primeiras têm aspectos que as recomendam, mas no fim das contas não se comparam à democracia que temos, mesmo em sua precária condição atual. A terceira é outra coisa. Inclui todos os tipos de futuros alternativos: alguns magníficos, outros terríveis, e em sua maioria, totalmente impenetráveis. É um espectro de possibilidades, tão amplo quanto qualquer experiência humana jamais conheceu. 

Afinal, qual a saída? David Runciman não apresenta uma solução para a “crise” da democracia, mas algumas lições para o século XXI, que poderão ser conhecidas na leitura da obra…

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Um prognóstico encerra a Conclusão. A democracia ocidental irá sobreviver à sua crise de meia idade. Com sorte, sairá dela só um pouco baqueada. Mas é improvável que saia dela revivida. Afinal, esse não é o fim da democracia. Mas é assim que a democracia chega ao fim

10 de março de 2021


Imagem de destaque: Todavia / Divulgação

 

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