Com que idade você começou sua primeira dieta?

Rafaela Vasconcelos Freitas1

É muito provável que as respostas remetam ao contexto escolar, permeado por vivências coletivas, comparações, desejo de pertencimento e “valorização”. Diversas narrativas que vieram a público recentemente ajudam a perceber como os espaços educacionais têm construído, para estudantes gordas (os/es), um fracasso anunciado. Esse processo é informado em diversos signos e práticas que explicitam a inadequação (uniformes apertados, carteiras estreitas, ofensas entre colegas e professores), temperando com culpa e vergonha o que poderia ser diferença. É também recorrente a associação das atividades físicas à punição e ridicularização. Na sutileza do cotidiano, entre pares com noções limitadas sobre diversidade e profissionais no mínimo coniventes, afirma-se o magro como sinônimo de beleza, capacidade e saúde. E, consequentemente, o corpo gordo vira um organismo em desgoverno à espera de intervenção. 

Esse raciocínio imediatista desconsidera contextos e condições que podem ter como efeito um desempenho diferencial entre as corporalidades, usando argumentações enganosas sobre biologia: as formas de ser gorda(e/o) são múltiplas e divergem em parâmetros de saúde, mas convergem na nomeação da impossibilidade. Produz, ainda, recompensa pelo esforço magro e foca na falha gorda. Nele, até o suor tem significados diferentes: é a prova da capacidade ativa magra e marca o esforço compensatório gordo. Nessa economia de pensamento, se descarta que alunas(os/es) podem estar sob pressão e/ou privação alimentar, ou desenvolveram, como mecanismo de defesa, um histórico de imobilidade. Afinal, socialmente invisíveis, menos discrimináveis.  E, deste modo, parte do percurso de formação é alijado do direito à (e prazer) alimentação e movimento. Na vida adulta, negociam com subjetividades afetadas e corpos “sem valor de mercado”. Pois, ainda que lucrativos para a “indústria da dieta”, suas possibilidades de acesso (ao afeto, ao emprego/renda) são prejudicados. 

Quando diferentes pesquisas e ativismos nomeiam a gordofobia, não se referem somente à rejeição estética. Ainda que esse aspecto seja importante, dizem principalmente do complexo mecanismo de controle e produção normativa dos corpos, que opera pelas violências emocionais e físicas. É, também, uma opressão articulada a outros marcadores, na construção de hierarquias e legitimidade social. 

Como discutimos nesta coluna, a escola pode ser responsável por promover padrões de gênero e sexualidade (cisheteronormativos). A gordofobia pode, por sua vez, facilitar esse processo, com discursos persuasivos para meninas regularem seus apetites e diminuírem suas medidas, atrelando um suposto sucesso afetivo e (hetero)sexual aos corpos “feminilizados”. “Cuidar-se” naturaliza, deste modo, processos violentos que vinculam emagrecimento e adequação estética a valores morais. Entre os garotos, valorizam-se corpos fortes e/ou atléticos, com uma distribuição de gordura que favoreça sua “macheza” (lembrando todas as piadas ofensivas em torno dos “peitos” ou da barriga que impediria a visualização dos genitais). 

Quando nas últimas décadas o aumento do peso populacional foi nomeado como epidemia, um forte debate público responsabilizou os cuidadores, e sobre as mulheres, em especial pretas e pobres, recaiu a culpa do “adoecimento”. Análises de políticas públicas nacionais e internacionais contra a obesidade infantil mostram como interesses neoliberais em privatizar serviços, controle estatal e criminalização da pobreza, mobilizam estas campanhas. Afirmando a falha moral e individual sobre os parâmetros de saúde, se desresponsabiliza o Estado e as instituições responsáveis por inclusão e direitos. 

Promover um debate sério e comprometido na esfera educacional sobre os processos de normalização corporal é também colocar em pauta ensinamentos sobre saúde, diversidade e valores éticos. Não significa negligenciar orientações bem fundamentadas sobre alimentação saudável e exercícios físicos, mas indicar como os discursos e práticas que orientam as construções corporais na atualidade produzem mais adoecimento que saúde. Os números alarmantes de distúrbios alimentares, graves alterações de taxas metabólicas cada vez mais precoces e casos de adoecimento mental e suicídio, após recorrentes discriminações por pressão estética e gordofobia, indicam urgência na revisão de parâmetros e responsabilidade coletiva. 

O chamado “combate a obesidade” é violento e ineficaz quando confundido com o combate às corporalidades gordas. As formas de adoecimento relacionadas à má alimentação não estão restritas à população gorda e no contexto do sul global é fundamental que sejam problematizados consumo, custos e qualidade revisando, por exemplo, legislações sobre ultraprocessados e agrotóxicos. A escola e outros espaços educacionais podem contribuir tornando-se seguros para corpos diversos, substituindo essa estética padronizada em torno da branquitude, cisheteronormatividade, com vieses capacitistas e gordofóbicos pela valorização da capacidade de reflexão e produção da miríade de corpos que compõem nossas comunidades. 

1Rafaela Vasconcelos Freitas. Doutora em Psicologia Social pela UFMG. Pós-doutoranda e professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Integra o Núcleo de Pesquisas em Sexualidade e Relações de Gênero  – NUPSEX/UFRGS. Contato: esh.rafaela@gmail.com  


Imagem de destaque: Charlotte Astrid

 

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