Cartografias participativas na EJA

Natalino Neves

Noções de espaço e tempo são inerentes a todo e qualquer processo formativo voltado para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Porém, nem sempre tais dimensões formativas são levadas suficientemente em consideração. As práticas educativas de EJA se realizam em diferentes espaços sociais. É comum a esse respeito que as formações ocorram tanto em instituições escolares como também em: igrejas, associações comunitárias, canteiros de obra, sindicatos de trabalhadores, aldeias indígenas, assentamentos de trabalhadores(as) rurais, comunidades quilombolas, presídios, entre outras.

Quanto à noção de tempo, entendido aqui, por ciclos da vida, o encontro intergeracional em turmas de EJA é bastante peculiar. São histórias, memórias, biografias de vida todas ali reunidas num só espaço. Espaços consagrados a promover diálogos intergeracionais com vista a garantir uma formação de caráter científica, profissional e humana. O sentido de educar se dá então por meio de temporalidades intercambiantes.

Sendo assim, a ausência e/ou a presença dos(as) educandos(as) estão intrinsecamente relacionadas com esse tipo de temporalidades. Em outras palavras, cursar a EJA significa conceder para si e, consequentemente, para as instituições de ensino, uma outra chance de continuar e concluir à educação básica. Para tal, é exigido desses sujeitos: superar a baixa autoestima, construir sonhos que passam necessariamente pela conquista do diploma escolar, desafiar leis de resistência física, cognitiva e afetiva uma vez que é preciso muitas vezes conciliar trabalho e estudo, desenvolver a capacidade de lidar com violências as quais incidem sobretudo na população de trabalhadores(as), negras e pobres residentes nas periferias e no campo, sair escondido de casa de modo que cônjuges e/ou filhos(as) não tomem conhecimento do retorno à escolarização.

Pensar em termos de cartografias participativas na EJA significa, portanto, considerar que as práticas educativas as quais ali se realizam acontece em distintos contextos socioespaciais. E mais, que elas se dão por meio de relações educativas humanas marcadas pelas diversidades.

Afinal de contas, as interações estabelecidas entre os sujeitos são concretizadas através de marcadores sociais diversos, a saber: etários (jovens, adultos e idosos), étnico-raciais (negros, brancos e indígenas), socioeconômicos (trabalhadores, desempregados e/ou em busca do primeiro emprego), de gênero (mulheres, homens, LGBTs), de inclusão (deficientes), de localização (aldeias, assentamentos, periferias), entre outros.

O conceito de cartografia empregado aqui extrapola a noção positivista e eurocêntrica que o entende somente enquanto a utilização de técnica “neutra” para elaboração representacional de mapas. O termo cartografia é inspirado do conceito automapeamentos. Para Viana Jr. (2016), o automapeamento consiste na maneira que os próprios sujeitos (povos originários, quilombolas, ribeirinhos, etc.) se autoclassificam de maneira participativa em seus territórios.

Instiga-nos a pensar nesse sentido como os(as) próprios(as) educandos(as) e educadores(as) inseridos em territórios socioeducativos diversos se autoclassificam? Essa abordagem analítica põe em xeque a rotulação pessoal “analfabeto”, por exemplo. Esse tipo de classificação cristaliza a forma de compreender os indivíduos apenas pelo viés do estigma social. Contudo, em sua comunidade esses mesmos indivíduos são reconhecidos por outros vínculos, pertencimentos e atributos sociais.

Nessa perspectiva, construir automapeamentos com a participação dos próprios atores sociais pode contribuir para evidenciar ações sociopolíticas e culturais de lutas, enfrentamentos e resistências. Visibilizar resistências as quais são empreendidas pelos próprios sujeitos, consiste em uma maneira possível de conceber cartografias participativas na EJA.

Cartografar potencialidades ao invés de reforçar classificações discriminatórias constitui assim um passo importante em direção à construção de uma educação emancipatória. Imagine o quanto revelador será perceber que estão presentes ali compartilhando o mesmo espaço formativo: líderes comunitários, representantes de sindicatos de trabalhadores(as), capitão de guardas de congadas, integrantes de coletivos juvenis, benzedeiras, membros de movimentos sociais, participantes de grupos religiosos, políticos, culturais, estudantis, entre outros.

Valeria a pena realizar também o exercício cartográfico com os profissionais da educação da EJA. Afinal de contas, mesmo diante de situações as quais se verificam: a ausência da discussão dessa modalidade de ensino na formação inicial docente, a carência de materiais didáticos adequados para trabalhar com jovens, adultos e idosos no que concerne sobretudo o trato com às diversidades, o fechamento de turmas de EJA mediante a “justificativa” de que não há interesse por parte do alunado e o tensionamento no que se refere o financiamento da EJA no âmbito das políticas públicas de educação, entre outros. Constataremos profissionais engajados na luta pelo direito à educação, educadores(as) vinculados a entidades sindicais e movimentos sociais, bem como ações coletivas e individuais por meio de práticas educativas de caráter emancipatórias no sentido de buscar romper com o cenário sociopolítico histórico marcado pela desvalorização da EJA que de certo modo atinge não só o público estudantil como também é estendido a seus profissionais.

O trabalho crítico cartográfico necessita romper desse modo com estereótipos e estigmas sociais hierárquicos e classificatórios que incidem sobre os sujeitos da EJA. Emerge daí a importância de considerar o legado da Educação Popular no interior de realização de suas práticas educativas.

O processo de formação humana, em concepções de Educação Popular, se articula com o de mudança e transformação social. Partindo dessas contribuições as práticas de EJA intentam superar a ideia de supletivo. E mais, elas são entendidas como parte de reivindicações e lutas históricas realizadas por sujeitos políticos organizados em diversos coletivos, sindicatos e movimentos sociais com vista a defender o direito à educação.

Nessa perspectiva, as finalidades formais a serem alcançadas com o processo de escolarização de EJA, a saber: certificação, recuperação do tempo perdido e inserção no mercado de emprego, além de serem problematizadas, elas necessitam de ser superadas e compreendidas como parte de um projeto emancipatório de libertação de toda e qualquer forma de opressão.

Desse modo, o trabalho cartográfico participativo pode contribuir para revelar agenciamentos sociopolíticos realizados pelos sujeitos em distintos territórios onde as práticas educativas de EJA são realizadas. Nesse caso, há que superar sistemas hierárquicos classificatórios de opressão. A construção de automapeamentos contando com a participação dos próprios atores sociais envolvidos(as) na realização dessas práticas constitui, portanto, em si novas e outras possibilidades de abordagem de EJA.


Imagem de destaque: Pillar Pedreira/Agência Senado

 

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