Cartas para Guimarães Rosa

Daniella Guimarães de Araújo 

Tânia Maria de Almeida Alves

A escrita individual como matéria para o tecido coletivo.

Em que momento se dá a experiência poética da contemplação, da introspecção para a elaboração de algo não usual?

O treinamento incessante de técnicas para medir, aferir, quantificar, responder a mensagem eletrônica – tudo tem que ser rápido, rápido, rápido e descartável – tem levado os sujeitos a um processo de automatização desvinculando-os do bem-viver. Desta forma, nos deparamos com colegas de trabalho desalentados, estudantes desestimulados, gestores-máquinas e o povo de espectador.

Esse estado de sofrimento e dormência só pode ser afetado pelo desejo da Utopia.

Por meio da literatura e da arte e a experiência da contemplação poética é possível alargar a visão individual e social e suscitar a compreensão de fatos, a tomada de consciência sobre situações da vida e estimular uma ação transformadora.

Nesse sentido, desenvolvemos o projeto Saúde e Literatura: a literatura como alento. Guimarães Rosa foi nosso primeiro autor escolhido. Reconhecido internacionalmente por sua literatura além do seu tempo, o escritor considerou a fundamentalidade do respeito ao ambiente, questões de gênero, a espiritualidade, a existência em sua dualidade e totalidade.

Após vários encontros com os trabalhadores de nossas instituições de origem refletindo sobre trechos da obra rosiana, decidimos pela realização de uma ação simbólica: a escrita de cartas manuscritas para Guimarães Rosa, como matéria individual para o tecido coletivo. Durante 4 meses, captamos cartas que deveriam contemplar pelo menos um dos dois temas: 1) Saúde no território; 2) Literatura e arte.

Além da homenagem ao autor, à arte e à literatura, o trabalho feito homenageia à criação, às narrativas que permitem reconhecer a subjetividade e a diversidade na humanidade comum. Também reconhece, no campo da saúde, expressões do diálogo que podem favorecer a escuta de outras vozes não apenas dos técnicos, dos gestores, dos cientistas.

Boa parte das cartas obtidas vieram de Cordisburgo, cidade natal de Guimarães Rosa, Andrequicé/Três Marias, cidade natal de Manuelzão e Morro da Garça, cidade inspiração do conto “O recado do morro”. Estas três cidades mineiras estão no sertão rosiano onde realizamos oficinas para obtenção das cartas problematizando conceitos de saúde, não como ausência de doença, mas como forma de estar no mundo. Também, recebemos cartas de outras cidades e estados brasileiros totalizando 228 autores.

Para a análise, as cartas foram separadas em quatro territórios: cada uma das três cidades rosianas e outras cidades, englobando as demais cartas de Minas Gerais e dos outros estados. 

Assim, a partir do conceito ampliado de saúde que engloba as determinações sociais e econômicas, as relações do indivíduo consigo mesmo, com o outro e com o ambiente, constatamos que 159 cartas (69,7%) citaram um ou mais dos seguintes aspectos: a importância do SUS; aspectos sobre cuidado com o corpo; cuidado com a saúde mental; necessidade de infraestrutura, como rede de esgoto e acesso à água potável; proteção da natureza.

Quanto ao tópico arte/literatura, 132 cartas (57,9%) citaram um ou mais dos seguintes aspectos: importância da literatura em geral; importância da literatura de Guimarães Rosa; a literatura como instrumento para a promoção da saúde, entre outros. Sobre arte, 32 cartas (14%) citaram: arte como magia; como parte importante da própria história; arte cênica; arte musical; arte como força de luta; ou ilustraram suas cartas com desenhos. 

Como resultados, tivemos: diversos encontros realizados para debater saúde por meio da literatura. Afetos e curiosidades despertadas. 228 autores de cartas manuscritas para Guimarães Rosa. Cartas escritas em oficinas ou recebidas via correio. Diversas considerações sobre o significado de saúde e da arte como potência para a promoção da saúde vindo de muitas cidades. Um livro produzido por nós sobre esse rico processo, escrito no ano do surgimento da pandemia. Nele estão contidas algumas cartas e muitas interpretações sobre a nossa leitura das linhas e entrelinhas. 

No livro contamos o percurso metodológico do projeto Saúde e Literatura e seus desdobramentos. Contém nossa forma de compreender que a arte e literatura também geram saúde. Um livro para ser distribuído entre os colaboradores nas regiões sertanejas participantes, e ser devolvido às comunidades que enviaram cartas. Um livro elaborado entre duas instituições de saúde do Sistema Único de Saúde que não pode ainda ser publicado devido aos processos burocráticos da autorização .

O projeto Cartas para Guimarães Rosa procurou responder a pergunta: É possível que uma ação simbólica – escrita de cartas a um renomado escritor – favoreça a reflexão sobre saúde e cultura e sensibilize sobre o que vem ocorrendo no país em relação a políticas públicas de saúde e cultura?

Nosso pensamento, com base na observação deste mundo e por meio da simplicidade das análises feitas na leitura das cartas recebidas, responde afirmativamente: Sim!

A arte e a literatura tem a potência de nos conduzir à reflexão e ao enfrentamento das questões sobre saúde e nosso modo de estar no mundo.

1Daniella Guimarães de Araújo é poeta e farmacêutica da Superintendência Regional de Saúde de Sete lagoas-SES/MG.

2Tânia Maria de Almeida Alves é pesquisadora da Fiocruz Minas.


Imagem de destaque: thetaxhaven / Flickr

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