Aspectos da concepção de leitura de Paulo Freire pensados na perspectiva da criação de textos escritos

Angélica Ruchkys1

Em seu texto “A importância do ato de ler”, Paulo Freire deixa os rastros de sua concepção de ensino de leitura na narrativa de suas memórias relativas à infância e à vida adulta. Noções desse texto são relembradas aqui no intuito de relacioná-las ao ensino da criação de textos escritos.

Para o autor, o ato de ler não se restringe à decodificação da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas precede a percepção do mundo e nela se prolonga, de tal modo que há uma relação de continuidade entre a leitura da palavra e a leitura do mundo, que se concretiza na “palavramundo”.

De modo semelhante, as regras que governam o ato de escrever um texto não se restringem a um ato mecânico de usar o sistema gráfico. Entre ler, pensar e escrever, muita coisa acontece. Ninguém escreve para não ser lido, nem que seja por si mesmo, como no caso de um diário íntimo. A escrita motivada, a escrita com sentido, a escrita contextualizada, a escrita viva, a escrita expressiva, a escrita do mundo, enfim, a prática de escrita assim adjetivada envolve-se intimamente com a “palavramundo”.

Para Freire, os textos “se oferecem” à curiosidade, à inquieta busca do leitor. No campo da escrita, também há algo que se oferece à inquieta e muitas vezes tensa busca de quem se propõe a criar/escrever um texto: é a língua concebida não como código estanque, estável e imutável, pronto e externo aos falantes, mas como portadora de valores culturais, sociais, políticos e ideológicos, rica fonte de recursos expressivos para seus usuários.

Em Freire, a leitura é indissociável da escrita. Mais do que isso, ambas são “indicotomizáveis”. De fato, a escrita não prescinde da leitura, pelo contrário, alimenta-se dela para se concretizar como uma prática social fundamentada e dialógica. 

A perspectiva freireana de leitura inclui o horizonte dos grupos populares no processo de alfabetização. Essa inclusão, pensada no que se refere ao ensino da “arte” de criar/escrever textos, suscita uma discussão em torno dos incentivos à composição de textos na vida escolar. Será que somos suficientemente estimulados a expressar o que pensamos e o que sentimos em nossas práticas de escrita? O que admitimos revelar de nossas leituras nos textos que compomos ou que gostaríamos de compor?

Em uma sociedade desigualmente constituída e profundamente letrada, é preciso conferir aos sujeitos possibilidades de domínio do uso social da escrita. Não se trata de propor o engrandecimento da escrita, mas de defender o direito (humano) de ser incentivado e orientado a usá-la de modo significativo em situações reais de comunicação. 

A escrita dá acesso a formas específicas de participação social que a oralidade não alcança. Há certos gêneros textuais — por exemplo a nota de repúdio e o manifesto, tão recorrentes no atual momento político do Brasil — que se realizam predominantemente na modalidade escrita.  Por meio da comunicação escrita, respondemos a pessoas, a instituições e a outras coletividades. Assim, o domínio do uso social da escrita possui, nesse cenário, um caráter transformador, humanizador e emancipador, que colabora para o pleno exercício da cidadania.

Soma-se a esse imperativo social de uso da escrita, o imperativo pessoal da autoexpressão, o imperativo de não ser apenas o objeto de escrita de alguém, mas de ser o próprio sujeito de sua escrita. 

Porém, muitas dificuldades cercam a escrita. Por que tantos a evitam e a temem? Por que há mais leitores do que “escritores”? Por que são tão frequentes as queixas sobre o domínio da escrita por alunos na universidade? Por que o “ter que escrever” tantas vezes e para tantos se sobrepõe ao “querer escrever”? 

Uma abordagem sensível da escrita se faz necessária ou melhor dizendo “uma abordagem freireana” da escrita para fazer enraizar no sujeito a experiência de escrever tanto sobre si, quanto sobre temas, fatos e pessoas; tanto para si, quanto para o outro, para as instituições e para as diversas coletividades.

 

1 – Doutora e mestra em Estudos Linguísticos (UFMG). Graduada em Letras/Língua Francesa (UFMG). Professora de Língua Portuguesa e Redação no Colégio Santo Agostinho. 


Imagem de destaque: Kim Rempel

 

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