As águas de março já não significam renovação, será?

Daniel Machado da Conceição

Um sábado, que iniciou chuvoso em Florianópolis/SC, finaliza o segundo mês do ano. Notícias nos telejornais informam sobre a necessidade do isolamento social e que os cuidados sanitários devem ser redobrados. O sentimento de pesar, impotência, angústia e desalento, permite ao olhar pela janela, lembrar da música “Águas de março”, composição do Tom Jobim, de 1972. Talvez, a lembrança esteja ligada a um pensamento de renovação, estamos por iniciar mais um mês de março, carentes de esperança.

Tom Jobim, que durante o período da ditadura militar no Brasil sofreu com desconfianças e certa perseguição, foi considerado subversivo, principalmente, após a assinatura com outros músicos de um manifesto e a negativa em apresentar-se no Festival Internacional da Canção, promovido pela Rede Globo. Era um momento em que o compositor questionava sua obra e era assombrado pelo sucesso da música Garota de Ipanema. Um estado de desilusão que após um dia cansativo resultou no primeiro esboço da letra que apontava para uma esperança, pois, “são as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração.” 

A canção fez parte de três álbuns. O primeiro de 1972, o segundo de 1973 e o terceiro aparecendo em 1974 (uma versão em dueto com Elis Regina), que trouxe à obra o sucesso comercial e a consagração. A lembrança dessa história e a mensagem que essa bela canção procura transmitir, remetem à nossa situação contemporânea. No ano de 2020, a pandemia da COVID-19 se disseminou pelo mundo. No Brasil, há um ano as primeiras medidas sanitárias e de isolamento social foram aplicadas. Ano em que as águas de março não fecharam o verão, mas apenas o estenderam.

Uma enxurrada de desinteresse, negacionismo, irresponsabilidade, desunião, ideologização, arrogância, insensibilidade, insanidade, autoritarismo, negligência etc., provocou uma enchente com muita lama e sujeira. Interessante que, guardadas as devidas proporções, o modelo de gestão no executivo federal se assemelha ao vivido por Tom Jobim na década de 1970, momento de incerteza e insegurança, no qual a desinformação era projeto. 

Entristece perceber que a pandemia não trouxe nas águas de março de 2020 a transformação redentora. Pelo contrário, foi um ano de tormentas e tempestades que destruíram as conquistas econômicas e sociais das últimas décadas. Os indicadores econômicos e sociais brasileiros são dissolvidos pelo aguaceiro que recoloca o país no mapa da fome, apresenta desemprego recorde,  aumento do número de desalentados, fuga de capital com patamares nunca observados, imenso contingente de trabalhadores informais, recuo na arrecadação, desvalorização da moeda, baixo poder de compra, inflação e estagnação do Produto Interno Bruto. Poderíamos incluir na lista inúmeros outros índices e indicadores que mostram o Brasil em ‘marcha lenta’ e em retrocesso. 

O ano de 2021 trouxe um certo alento, pois, as vacinas tão esperadas significam que as novas “águas de março” se aproximam. Sentimento de esperança que potencializou o relaxamento da população que descuidou dos procedimentos e se vê sem possibilidade de atendimento médico em hospitais lotados com pacientes positivados não importando se públicos ou privados. Fato que nos alerta indicando que a enxurrada não foi embora, suas águas ficaram retidas e represadas.

A negligência, incompetência e desumanidade da gestão governamental federal estão expostas na incapacidade frente ao momento emergencial, uma situação observada no passado, mas em meio a outro tipo de sociabilidade. O governo utiliza a pandemia como uma espécie de muleta que, logo, não será mais suficiente para esconder sua inépcia. Aqueles que pensam que a pandemia é um momento terrível, ainda se preocupam com a altura da lâmina d’água. Nosso maior problema está por vir, quando a pandemia não servir mais como desculpa para inabilidade e ignorância.

As atuais “águas de março” não significam esperança, ainda teremos que esperar as águas de junho, setembro ou dezembro, e talvez até mesmo o final do próximo verão. Em que pese os desafios, não podemos perder a crença em dias melhores, parte dessa esperança é promover transformações pessoais para encarar o fato de que depois de uma boa chuvarada, as coisas não são mais como antes. Após sua passagem evidenciamos a bonança, para o bem ou para o mal, ela sempre simboliza um novo tempo.

Precisamos aprender com Heráclito, quando entramos duas vezes no mesmo rio, nem quem entrou, tampouco o rio serão os mesmos. Nosso problema é que muitos ainda esperam recomeçar do verão passado. Já não somos mais os mesmos, porém, as “águas de março” continuam como promessas no teu, no meu, no nosso coração, ainda significam renovação e esperança. Esse sentimento permite encarar mais essa tempestade. Cuidem-se todos e acreditem.

Para saber mais: 

Elis Regina & Tom Jobim – “Águas de Março” – 1974. Disponível aqui. Acesso em: 27 fev. de 2021. 


Imagem de destaque: Divulgação / ABr – Foto de uma das regiões atingida pelas enchentes de Santa Catarina, em 2008.

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