Ações afirmativas e uma trajetória antes, durante e depois

Daniel Machado da Conceição

Quem é o Daniel que escreve essas linhas? Ele é natural de Pelotas/RS, homem preto, morador de Florianópolis há pelo menos 23 anos, casado, com duas filhas e um filho. Realizou atividades profissionais na função de assistente administrativo, almoxarife, auxiliar de depósito, vendedor, motorista entregador. Também foi assistente administrativo na Secretaria Municipal de Saúde e agente de pesquisa na agência do IBGE em Florianópolis/SC. Nos períodos de desemprego, na condição de informalidade trabalhou como pintor, servente de pedreiro, entrevistador de pesquisa de opinião e segurança de eventos.

Em 2008, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) realizou o seu primeiro vestibular com ações afirmativas. O Daniel foi aprovado no curso de Ciências Sociais e a partir da sua inserção no Ensino Superior tornou-se professor, educador, pesquisador, coordenador educacional e consultor. Destacar essa trajetória não é com propósito de vanglória pessoal, nem servir de modelo meritocrático ou crítica pela oportunidade tardia. Talvez o sentimento envolva todas as hipóteses ou nenhuma delas! O primeiro objetivo é afirmar que, por meio da educação, podemos transformar vidas. Quebrar correntes que impedem ou limitam a construção dos projetos pessoais, sejam eles: escolar, carreira e vida. A educação é uma possibilidade de romper com o círculo vicioso da pobreza. Não quero parecer inocente ao realizar essa afirmação, não desconsidero que a escola é excludente, ela seleciona os mais aptos e a inflação dos diplomas provoca redução nos salários.

As transformações que a educação possibilita são reais. Falo de um homem negro, em uma sociedade de estrutura racista e que atribui a determinados grupos populacionais posições específicas na divisão social do trabalho. Com a escolarização inicial, o Daniel realizou atividades subalternas sem grande prestígio social, ao avançar para um novo nível estava apto para atividades de média complexidade, logo, com a formação superior lhe é permitido estar em outra sala, acessar outros espaços, conhecimentos e saberes. Que movimento espetacular!

Essa mudança traz algumas implicações, muitas pessoas se acostumaram a encontrar negros e negras recebendo ordens ou dividindo tarefas. Fato que cria uma certa naturalização e produz generalizações, como todos os negros são iguais ou todos são muito parecidos. Quando alguém fala dessa maneira, o que ela quer dizer? Bom, além de observar a aparência, também afirma que as práticas comportamentais são determinadas por questões biológicas como no século XIX e XX ou genéticas como no século XXI, tendo como ‘pano de fundo’ ideologias e teorias racistas.

Talvez por essa razão, quando o Daniel está fazendo suas compras, alguém sempre pergunta se ele trabalha no local. Funcionários ou agentes de segurança sempre acompanham o Daniel enquanto ele percorre os corredores do supermercado, loja de departamento ou shopping. Ações discriminatórias que precisam ser combatidas de maneira direta.

Os resultados das ações afirmativas estão permitindo confrontar o estado das coisas, pois, estamos começando a ver a presença de profissionais negros em postos/funções/ocupações de prestígio, responsabilidade e tomada de decisão, e que infelizmente ainda causa espanto ou desconforto em muitas pessoas. Ao assistir os telejornais percebemos profissionais negros e negras apresentando ou comentando sobre política, economia, cultura etc., não mais restritos aos assuntos sobre a comunidade negra e seus valores culturais, mas ainda temos muito a avançar nas mais diversas áreas.

As políticas educacionais esbarram no racismo estrutural que pode ser percebido nas organizações, o chamado racismo institucional. A educação é uma arma poderosa de transformação e precisamos falar daquilo que continua estruturando um modelo mental que significa generalização e naturalização. A racialização das posições é muito comum ser observada no esporte, isto é, o corpo negro é adequado ou não para determinada modalidade ou posição na configuração do jogo.

É preciso pensar sobre quais posições os profissionais negros e negras estão desempenhando nas organizações. As ações afirmativas estão possibilitando a formação e qualificação garantindo o acesso a novos espaços, porém, facilmente identificamos funções racializadas que ainda colocam os negros e negras no fundo da sala ou como meros coadjuvantes nas organizações.

Nas próximas semanas, nossa sociedade vai rediscutir a continuidade das ações afirmativas, a Lei 12.711/2012 completará 10 anos, período da sua avaliação. O acesso foi garantido e o sucesso dessa política pública é indiscutível. O momento é de aperfeiçoar o acesso com dispositivos que minimizem as fraudes, qualificar a garantia de permanência dos estudantes cotistas e, principalmente, debater como o racismo institucional orienta a racialização das posições. Fato que impede o reconhecimento e a valorização dos diversos profissionais negros e negras com diploma de graduação e que não conseguem ocupar os almejados postos de trabalho.


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