A vida como ela se tornou com a nova cultura do home office em tempos de isolamento social

Evelyn de Almeida Orlando

Quando o isolamento social começou, em meados de março de 2020, boa parte de nós achou que finalmente teríamos tempo, tempo livre, a ser preenchido com coisas que há tempos vínhamos sonhando, flertando, adiando para quando tivéssemos tempo. Pensamos que iríamos, finalmente, ler todos os livros empilhados (ou devidamente classificados e separados, para quem é fã dos e-books) em nossas listas de desejos, maratonar todas as séries do Netflix e assistir a todos os filmes que conseguíssemos. Também pensamos que seria talvez o momento de fazer outras coisas, aprender algo novo, inventar novos projetos, criar novos hobbies, sem sair de casa, claro. Tudo isso porque agora nos parecia termos todo o tempo do mundo. E como não somos educados a apreciar o ócio, precisávamos achar uma forma de preenchê-lo. E achamos. 

Curiosamente, o trabalho que há tempos nos consome em uma lógica perversa de produtividade, que nos rouba a vida de muitos modos, ganhou novos suportes, novas tecnologias, novas demandas e um novo tempo. Um tempo contínuo, constante, presente, sempre presente, que não precisa de lugar ou hora para ritmar o nosso dia-a-dia. Sem que percebêssemos, ele foi se instaurando em nossas casas, que agora deixaram de ser nossas casas e passaram a ser nossos escritórios (isso para quem pode trabalhar nessa lógica de home office), e ditando o ritmo da nossa vida no espaço que deveria ser o nosso espaço privado. E a invasão do espaço privado veio acompanhada do roubo do tempo privado. Se você está em casa, por que não está trabalhando? Por que não está produzindo? Por que não viu o e-mail? Por que não respondeu o whatsapp

As tecnologias de poder, como já nos chamou a atenção Foucault, se refinaram. Não estou dizendo que a modalidade do trabalho remoto não tenha suas vantagens. De fato, até encontramos algumas. Mas, antes de tudo, essa modalidade precisa ser uma escolha e não uma imposição. E, mesmo para ser uma escolha, precisamos entender seus limites, porque as imposições se fazem de muitos modos, e faz parte das novas tecnologias de poder que sejam cada vez mais sutis. Uma delas é fazer você acreditar que você está escolhendo, de fato.  Mas será que escolhemos trabalhar 12, 15 horas por dia? Ou essa aparente escolha, em nome da produtividade, vem acompanhada do medo de perder o emprego ou dos juízos de valor dos colegas que aderem e naturalizam essa lógica, criticando e excluindo quem não se encaixa nesse padrão? Ou viria acompanhada do nosso próprio repertório que, produto dessa cultura, nos leva a uma autorregulação permanente em relação ao uso do nosso tempo associada à culpabilização de não estarmos dando o máximo de nós (este é um dos mecanismos mais eficientes de controle dos indivíduos em relação ao trabalho, sobretudo dos profissionais liberais)? 

Isolados socialmente, recorremos às telas dos computadores e dos celulares como forma de encurtar as distâncias e não perder a conexão com o mundo. Não usamos todo aquele tempo para nós mesmos como pensamos inicialmente. As empresas de telecomunicações lucraram incrivelmente com a nossa dificuldade de isolamento e empregadores perceberam rapidamente que o trabalho não precisava, necessariamente, parar. Em alguns setores, ele não apenas continuou, como se intensificou. Afinal, superamos todas as dificuldades para estar conectados o tempo todo. Essa superação poderia se tornar produtiva. E se tornou.  

Logo, aquele tempo em que pareciam caber tantos projetos foram se esvaindo, encurtando, ao ponto de hoje – quase um ano depois do início da pandemia – dormirmos exaustos, sem saber como o dia passou tão rápido e o que fizemos além de ficar em frente à tela do computador, trabalhando. 

De repente, os relatórios se multiplicaram – todos para ontem –, porque agora temos tempo, afinal estamos em casa; as lives também se multiplicaram, pois, ficou muito mais fácil e mais barato promover e participar desse tipo de evento, o que é ótimo para a circulação do conhecimento, mas também para egos aflorados que, como narcisos, descobriram a internet como um espelho; também se multiplicou o número de reuniões, que agora são marcadas sem sequer consultar a agenda dos participantes, afinal, todos estão em casa, disponíveis. Tem sido comum recebermos avisos de duas, três reuniões na mesma empresa, no mesmo horário, onde nossa presença é obrigatória em todas, prática que parece anunciar o advento da onipresença como uma nova realidade para os mortais; os códigos de etiqueta também têm sido alterados com a invasão da vida privada pelo trabalho, afinal, não raro chegam em nossas caixas de e-mails e whatsapp mensagens em horários ou dias que, na época em que os códigos de civilidade incluíam a etiqueta social, seriam considerados inadmissíveis, a não ser em casos de urgência e jamais sem um pedido de desculpas. E o curioso é que já nem estranho as mensagens serem enviadas ignorando solenemente essas regras, já até acho que tudo bem mandarem, desde que não esperem que eu responda. Essa aceitação é, por si só, um forte indício de naturalização desse processo de mudança no qual todos nós, apesar de fazermos a crítica, provavelmente também já incorremos, porque somos produtos dessa cultura que sutilmente, de modo aparentemente despretensioso, vai (re)configurando os nossos tempos e formas (ou fôrmas) sociais e instaurando uma nova cultura: a da conectividade e do trabalho permanente, e do tempo como utopia.    

Mas, para deixar um pouco de trabalho para depois, e aproveitar o que resta desta terça de carnaval atípica (quando escrevo este texto), continuamos esta discussão na semana que vem.


Imagem de destaque: Grovemade/Unsplash

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