A privatização do saneamento e seus riscos aos Direitos Humanos

José Irivaldo Alves de Oliveira Silva¹

Bruno Peregrina Puga²

 Priscila Neves-Silva³

A discussão sobre a busca de um Estado mínimo no qual serviços essenciais sejam fornecidos por entes privados tem crescido nos últimos anos. No entanto, é preciso desvencilhar a titularidade do serviço de quem o fornece, bem como verificar a relevância desses serviços na vida cotidiana das pessoas. Em tese, se o serviço é público significa que o agente público providenciará seu fornecimento. Entretanto, a legislação nacional faz a distinção, mantendo sob a regulação pública certos serviços, podendo estes serem fornecidos por agentes privados, a exemplo dos serviços de telefonia, de transporte público, de gás natural, entre outros. 

Nesse rol, destaca-se o saneamento, que no caso brasileiro é um serviço complexo formado pelo acesso à água potável, à coleta e tratamento de esgoto, disposição final de resíduos, limpeza urbana e drenagem. É um “pacote” de serviços essenciais que possuem uma inter-relação muito forte com a qualidade de vida e meio ambiente, cuja aprovação da Lei 14.026/2020, que favorece sua privatização, levanta questionamentos importantes.

Os impactos das privatizações dos serviços públicos e os questionamentos frente à capacidade do setor privado em garantir qualidade dos serviços prestados vem sendo debatido desde os anos 1990, quando a agenda da privatização foi amplamente difundida por agências multilaterais internacionais, tendo sido implementada principalmente nos países em desenvolvimento. Entretanto, tal processo não logrou atingir os benefícios e escala esperados (Budds & McGranahan, 2003). 

A crença de que o setor privado possa atrair o volume de recursos necessários vai na contramão de tendências de retomada para as mãos do setor público. No caso do saneamento, há pelo menos 311 casos de remunicipalização da água em 35 países, como resposta à incapacidade dessas empresas em cumprir com os objetivos sociais (Kishimoto et al, 2020).

Desse modo, podemos destacar que cada serviço possui peculiaridades, porém, o acesso à água e à coleta e tratamento de esgoto destoa dos demais, uma vez que são considerados direitos humanos desde 2010 pela Organização das Nações Unidas (ONU) em virtude da sua essencialidade na manutenção da vida no planeta, possibilitando qualidade ambiental e de saúde para todos. Portanto, a essência desses serviços não se coaduna com os propósitos legítimos de lucratividade das empresas privadas, o que pode colocar em risco a concretização do acesso a esses serviços essenciais por meio da universalização. A questão que se coloca é saber se privatizar é a solução para universalizar o acesso a esses serviços fundamentais para dignidade humana. 

Segundo o ex-relator da ONU para os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES), a privatização dos serviços de água e saneamento pode promover riscos para a realização dos DHAES, através de aumento de tarifas e cortes no abastecimento por falta de pagamento, podendo levar à busca por fontes alternativas com efeitos deletérios à saúde (Heller, 2020). 

O relatório destaca pelo menos três fatores que podem, de forma combinada ou não, representar tais riscos: maximização dos lucros, monopólio natural dos serviços e desequilíbrio de poder. O primeiro refere-se à lógica privada de busca incessante pelos lucros e que podem levar a práticas que afetam tanto a acessibilidade do serviço como a prestação do mesmo. O segundo representa uma característica da escala da provisão do serviço que denota a falta de competição do serviço, podendo levar a maiores riscos de captura e corrupção. Já o último, aponta para as assimetrias de poder, informação e recursos que podem desfavorecer as autoridades com menos recursos e poder de barganha.  

A privatização deve ser compreendida em um sentido amplo, englobando diferentes formas de delegação da prestação dos serviços pela autoridade pública a atores privados. Não apenas se restringe à venda dos ativos econômicos, mas também inclui a lógica presente nas empresas mistas, as quais geralmente o estado detém ainda a maior parte do controle e captando recursos via oferta de ações nas bolsas de valores.  

Uma lei que provoca tamanhas mudanças nas vidas das pessoas, como a 14.026/2020, mereceria sem dúvida maiores discussões e esclarecimentos, principalmente em um momento delicado como o atual.

 

1Doutor em Direito Humanos e Desenvolvimento. 

2Doutor em Desenvolvimento Econômico. 

3Mestre e Doutora em Saúde Coletiva. 

 

Os autores e a autora são Pós-doutorandos no grupo de pesquisa em Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento da Fiocruz/Minas.

 

Para saber mais:
Budds, J., & McGranahan, G. (2003). Are the debates on water privatization missing the point? Experiences from  Africa, Asia and Latin America. Environment and Urbanization, 15(2), 87–114.

Heller, Léo. 2020. “Direitos humanos e a privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário.” Relatório do Relator Especial sobre os direitos humanos à água potável e ao esgotamento sanitário (A/75/208). 21 Julho 2020.

Kishimoto, S., & Petit, J. (2020).  Reclaiming Public Services: How cities and citizens are turning back privatisation. TNI: Amsterdam e Paris, 2020.

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Caroline Ferraz/Sul21

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