A política como solução

Natascha Stefania Carvalho De Ostos¹

No ano de 1912, a revista Fon-Fon, impresso de sucesso no Brasil da primeira metade do século XX, publicou o seguinte trecho de uma anedota: 

“– Tratemos um pouco de política. 

– Que horror! 

– Já esperava esta exclamação regulamentar. És bem brasileiro, és absolutamente brasileiro”. 

 (Fon-Fon, fev. 1912)

Naquela época o país já vivia, há pouco mais de 20 anos, sob um regime republicano cujo sistema representativo era excludente, pois a maioria da população, cerca de 80%, era privada do direito ao voto. Mulheres e analfabetos estavam excluídos do processo eleitoral que, além de tudo, era permeado por vícios desde a candidatura até a apuração dos resultados, fazendo do escrutínio uma mera formalidade, já que os vencedores eram previamente escolhidos pelas listas de candidatos encaminhadas pelos partidos da situação (Carvalho, 1987, p. 42-65). Esses elementos podem explicar, em parte, o horror daquele cidadão brasileiro imaginário diante da proposta de se discutir política. 

Mas o fato é que, no Brasil de hoje, em que a participação política é muito mais ampliada e o sistema eleitoral confiável, ainda percebemos esse desprezo “regulamentar” pela política. Primeiramente, nota-se, no senso comum, uma compreensão estreita da política, como prática meramente institucional e eleitoral. A Política é reduzida ao voto e exercida apenas pelos representantes. Ocorre que política é tudo aquilo que se dá no espaço público, de forma a debater e decidir sobre o coletivo, como aponta Marilena Chauí. Nesse sentido, fazemos política quando, por exemplo, integramos uma associação comunitária de bairro, que reivindica e delibera sobre aspectos importantes para aquela área e os seus moradores. Ou quando as pessoas participam de uma greve, movimento estudantil, sindicato, coletivos e organizações não governamentais destinados a defender uma causa. Um segundo ponto é que a política institucional, levada a cabo no Legislativo e Executivo, é vista por muitos como mero jogo de interesses pessoais, o que uniformiza as diversas forças atuantes em um grande campo semântico negativo: A Política. Essa política, com “P” maiúsculo, verdadeira essência, cristaliza-se no imaginário como algo imutável, muitas vezes remetendo a ideias desqualificadoras: corrupção, individualismo, nepotismo, uso indevido da máquina estatal, privilégios, etc.. 

Mas, a quem interessa essa ideia negativa da política? Nos últimos anos, sua demonização por alguns veículos da imprensa tem ajudado a alçar ao poder representantes que, apesar de participarem do jogo político, serem filiados a partidos e estarem claramente ligados a certas linhas políticas, alegam não serem “políticos profissionais”. Nesse cenário de negação e desprezo pela política abre-se espaço para os “isentos”, que tentam escamotear suas posições e ideias, mas que estão vinculados a interesses e correntes muito bem definidos. A percepção de que a política é algo ruim ajuda a promover a ascensão dos chamados “salvadores da pátria”, pois o eleitor acredita que está votando em um indivíduo de sua confiança, e não em um projeto. 

O “horror” à política, como pontuado no trecho de 1912, afasta o cidadão do debate público, diminui a pressão e a cobrança sobre os representantes e gestores, desconecta a população da ideia de coletivo, fazendo da esfera privada o principal ponto de referência. Além disso, quando boa parte da sociedade vê a política como algo negativo, abre-se o flanco para soluções autoritárias, pois se dissemina a ideia de que a política é aquilo que “atrasa” o país e a sociedade, e que o melhor seria substituir os fundamentos do Estado Democrático de Direito por um líder forte, acompanhado de seus tecnocratas, para que todos os problemas e as contradições sociais se resolvam. 

Isso não quer dizer que a posição de ceticismo e desconfiança com relação à política institucional não tenha fundamentos históricos e bases concretas, e sim que, ao desacreditar-se a política de modo generalista, a legitimidade do próprio sistema representativo acaba minada. Fato é que a solução para esse dilema parece ser, justamente, mais política. Política participativa, diversa, mas que garanta não apenas a presença dos atores com menor poder material e simbólico no debate, mas principalmente mecanismos que equilibrem a capacidade decisória dos diferentes agentes políticos, de forma que as chamadas minorias tenham condições reais de definir e implantar políticas públicas capazes de mudar as estruturas sociais do país.

1Historiadora – Pós-doutoranda da Fiocruz Minas. 

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.

 

Para saber mais: 

CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

CHAUÍ, Marilena. O que é política?. In: NOVAES, Adauto (org.). O esquecimento da política. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 33.

OSTOS, Natascha Stefania Carvalho De. Sociabilidade parlamentar cena: atores políticos, cotidiano e imprensa na cidade do Rio de Janeiro (1902-1930). Belo Horizonte: Fino Traço, 2020. 

Notas de Bom Humor. Fon-Fon. Rio de Janeiro, ano V, n. 5, 03 fev. 1912, s./p.


Imagem de destaque: Radoan Tanvir / Pixabay

 

 

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