A difícil conquista da cidadania

Eugênio Magno

As chamadas tentativas de golpe por parte de segmentos expressivos da mídia e o pacto das elites, com o objetivo de interromper governos progressistas em nosso país, é uma constante. Esses mesmos grupos também são responsáveis por barrar candidaturas de líderes populares e inventar salvadores da pátria de última-hora que massacram a população, leiloam nossas riquezas e destroem as instituições. Essas e outras constatações me provocaram a fazer uma releitura do texto “Cidadania a porrete”, do historiador José Murilo de Carvalho, publicado no Jornal do Brasil em 18.12.1998. 

O título do texto carrega o significado da agudez crítica do autor sobre essa nossa herança maldita que faz perpetuar práticas condenáveis. Se cidadania é a qualidade ou estado de cidadão, e cidadão, segundo o Aurélio, é o indivíduo no pleno gozo de seus direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este, e porrete é um cacete com uma das extremidades arredondadas, com a qual se bate ou se apanha, juntar as duas palavras é denunciar uma atitude de extrema perversidade. Cidadania a porrete nos convida a refletir sobre nossa trajetória histórica, marcada pelo arbítrio que martirizou tantos líderes populares nesses 522 anos de uma evolução sangrenta, que insiste em continuar vitimando tantos “brasileirinhos”.

O ex-marinheiro Ferreirinha, inspirador do texto de José Murilo de Carvalho, com 98 anos viveu um quinto da idade de nosso país. Sendo ele negro, nascido apenas dois anos depois da abolição da escravatura e tendo vivido até o limiar do século XXI, está mais do que autorizado a fazer a denúncia sobre o porrete. É o sujeito-personagem dessa famigerada história real. Ferreirinha confessa que o seu gênio foi quebrado na porrada e, como quase todos os marujos da época, levou marmelo no lombo. E que, só assim, compreendeu o que é ser cidadão brasileiro. Ao contrário de outras cidadanias, construídas tendo como base princípios de liberdade, a brasileira se fez e continua se fazendo com o indivíduo sendo dobrado, amansado, ajustado a seu lugar, diz o artigo.

As raízes dessas distorções estão em nosso processo colonizatório. A clara dominação da cultura europeia, a concentração de riquezas pelas classes dominantes e a imposição da cultura do branco sobre índios e escravos, e até mesmo sobre os ex-escravos, são os motivadores daquilo que é apontado como um dos principais antagonismos do Brasil, o do senhor e do escravo, casa-grande e senzala.

O Brasil-império repetiu as mazelas do tempo colonial. A primeira constituição brasileira foi feita de cima para baixo. A proclamação da república foi distanciada da opinião pública e logo foi instalada uma república oligárquica – de coronéis, onde a lei de ouro era “para os amigos pão, para os inimigos, pau”. Os pobres sempre foram criminalizados no Brasil. Para governantes como Washington Luís, a questão social era questão de polícia. Houve época em que a ação efetiva dos sindicatos era reprimida, e com a influência externa do anarquismo, do comunismo e do marxismo, os trabalhadores eram vistos como “classe perigosa”. O golpe militar de 1964 implantou no país o terror e um regime de exceção que durou 20 anos.

Com a adoção das práticas neoliberais no país, a partir do governo Collor, agravaram-se as distorções e o cacete continuou a tinir no lombo do povo. Enquanto as propriedades rurais brasileiras continuam concentradas nas mãos dos latifundiários e do agronegócio, mais da metade da população vive sem condições de atender às suas necessidades básicas de sobrevivência e os conflitos por questões fundiárias criam um estado de constante tensão no campo. Foi desencadeado no país um processo de flexibilização progressiva das leis trabalhistas, que parece irreversível. A financeirização do capital, a digitalização dos modos de produção, o desemprego e a exclusão social aumentam a cada dia.

Esse estado de coisas representa uma grande porretada no lombo do povo brasileiro. A despeito das tentativas ostensivas de excluir da disputa presidencial o líder operário gestado pelos movimentos populares, o povo está contrariando a orientação dos chamados formadores de opinião, e recoloca Luís Inácio Lula da Silva como líder em todas as pesquisas de intenção de voto. Até que surja um novo líder popular, Lula continua sendo o político que melhor encarna o ideal de esperança em dias melhores para milhões de brasileiros que viveram os últimos 6 anos, com Michel Temer e Jair Bolsonaro, os anos mais difíceis da história democrática do país.

O fato de Lula ser de origem humilde, ex-operário e de um partido que conseguiu a façanha de unir movimentos sociais, cristãos – especialmente um segmento dos católicos –, revolucionários, intelectuais, artistas e marxistas “atualizados”, deixa as elites iradas. Ferreirinha, o ex-marinheiro negro, diz que virou cidadão, no marmelo, na lambada. Para outros, foram usados instrumentos diferentes. A função do cacete é amansar os que fogem ao espírito de camaradagem que deve ser a marca do povo brasileiro. Afinal, “o brasileiro é cordial”. Mas, a porretada, como é dito no referido artigo, é uma paternal admoestação para o grevista, para o índio, para as minorias, para a empregada doméstica que responde mal à patroa, para o aluno-problema, para o crioulo que não sabe qual é o seu lugar na sociedade e, no dizer irônico de José Murilo de Carvalho, “para qualquer um de nós que não saiba com quem está falando. É para quebrar o gênio rebelde e trazer de volta ao rebanho, os extraviados. É um cacete brasileiro, muito cordial, é pau-brasil”.

As técnicas da paulada vêm se diversificando e chegaram a níveis sofisticadíssimos. O povo, em geral e o pobre em particular, sente seus efeitos na tela (da tv, do computador e do celular), no caixa do supermercado, no bolso, quando não, na própria pele mesmo.


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