O tal foco narrativo

 Alexandre Azevedo

Dos elementos essenciais de uma narrativa, creio ser o foco narrativo de uma importância fundamental para a compreensão do enredo. Mas o que é foco narrativo? Nada mais que o antigo tipo de narrador, aquele que conta a história. Dos vários tipos, o que mais me atrai é o narrador em terceira pessoa onisciente, aquele que tudo sabe. Há também o em primeira pessoa, que por esse motivo, também é personagem, às vezes como protagonista, como é o caso do Brás, das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis – mas será que o Brás é protagonista ou antagonista? Ou antes, um anti-herói, não sendo nem uma coisa nem outra? Mas isso é uma coisa que podemos deixar para outra ocasião – às vezes como secundário, como é o caso de Zé Fernandes, narrador testemunha da trajetória do protagonista, Jacinto, do romance A cidade e as serras, do grande Eça de Queirós. Há também o narrador observador, que conta a história, limitando-se apenas ao que vê, às vezes ultrapassando um pouquinho desse limite como é o caso do Aires, o famoso diplomata aposentado que, numa espécie de diário, narra a vida de um casal de velhos, Aguiar e D. Carmo, os alter ego de Machado de Assis e Carolina Novaes, sua esposa – vale lembrar aqui que a primeira e a terceira pessoas estão presentes nesta obra, isto é, ao falar de si, o conselheiro usa a primeira pessoa, mas ao falar do casal em questão, utiliza-se da terceira pessoa. Mas quero aqui, como disse anteriormente, falar do tipo de narrador que mais me atrai: o em terceira pessoa onisciente. Fazendo, inicialmente, uma comparação entre Dom Casmurro e Quincas Borba, duas das obras-primas de Machado de Assis. Atentando-se para o foco narrativo, tem-se o em primeira pessoa no primeiro; e o em terceira pessoa onisciente no segundo. Em Dom Casmurro quem narra é Bentinho, sujeito obcecado pela traição da mulher, a enigmática Capitu, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Dizer que o tema central desse romance é a dúvida do adultério seria um disparate, uma ofensa à memória do Machado. Mas, de qualquer forma, é um de seus temas secundários, pode-se dizer assim. Bentinho – narrador personagem, é bom reforçar essa sua condição – tem a certeza de que foi traído pela mulher, sobre isso ele não deixa dúvida nenhuma, mostrando ao leitor as suas provas irrefutáveis. Mas e o leitor? O leitor acredita nas palavras dele e em suas provas? Uns sim, outros não, portanto não é uma unanimidade, isso é fato. Quantas e quantas vezes isso já foi discutido, até mesmo por intelectuais renomados, uns defendendo Capitu, outros atacando-a, não havendo, jamais, um consenso. E por que acontece isso? Porque o romance é escrito em primeira pessoa, portanto numa visão unilateral dos fatos narrados – mais parcial que Bentinho, impossível. Mas e se foco narrativo fosse em terceira pessoa onisciente? Aí não teríamos dúvida alguma, pois o narrador teria a capacidade de ler o pensamento de Capitu, de Escobar e saber de toda a verdade – isso se ele não for egoísta e não revelar a verdade ao leitor, mas isso não aconteceria, não é próprio de um narrador que se acha um Deus. No caso de Quincas Borba, este sim narrado em terceira pessoa onisciente nos revela que Sofia, mulher do ambicioso Cristiano Palha, sente uma atração não pelo Rubião – este perdidamente apaixonado por ela –, mas pelo jovem Carlos Maria, que mais tarde se casará com a prima dela, Maria Benedita. Mas em nenhum momento aparece Sofia cometendo adultério. O que eu quero dizer com isso? Que Capitu, por ser retratada pelo narrador personagem, pode ter sido adúltera ou não, pois não há provas concretas. Já Sofia, esta sim, está propensa a cometer o adultério, já que tem atração por outro homem que não o seu marido. E quando o narrador onisciente é o próprio autor da obra? Pode isso? É claro! Deixemos um pouco Machado e falemos de outro grande escritor brasileiro, Graciliano Ramos, autor de três romances que lembram muito os de Machado de Assis: Caetés; São Bernardo; Angústia. E da maravilhosa novela Vidas Secas. As três primeiras obras narradas em primeira pessoa: Caetés, por João Valério; São Bernardo, por Paulo Honório e Angústia, por Luís da Silva. Portanto, romances introspectivos, em que os personagens narradores expõem ao leitor os seus conflitos numa espécie de diário íntimo. Assim, cada um deles é responsável por aquilo que narra, e não tendo o autor qualquer tipo de responsabilidade sobre o que foi dito. Ao escrever Vidas secas, Graciliano optou pelo narrador em terceira pessoa onisciente, tornando-se o responsável direto por aquela família de retirantes: Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia. Como eles pouco falam – a prova disso era o papagaio da família que só sabia latir e tanger o gado porque era só isso que ouvia da família, nada mais –, daí o narrador onisciente “falar” por eles, usando do discurso indireto-livre, típico discurso de obras cujo narrador é onisciente. Já pensou se não houvesse a onisciência nesta obra? É bom nem pensar… Já notaram que o narrador onisciente é quase um personagem? Quem conhece as Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida – um romance romântico em dissonância com o próprio Romantismo –, já notou isso. Apesar de ter no título a palavra “memórias”, o romance não é escrito em primeira pessoa, como as Memórias póstumas de Brás Cubas, e sim por um narrador em terceira pessoa dotado de onisciência. Bem humorado, debochado, esse narrador assim apresenta o protagonista da história, o anti-herói boa gente Leonardo, para dar início às suas aventuras e, claro, desventuras: “Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história” (p.3). E assim começa a onisciência em nossa literatura… Fica aí a dica.

 

Para saber mais

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias, São Paulo. Editora Ática, 1998.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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