1922 contestado: o centenário nas crônicas de Lima Barreto

Vinícius de Castro Lima Vieira

Já era quase noite quando os equipamentos colocados no alto do Morro do Corcovado iniciaram a transmissão do discurso do presidente. Em São Paulo, Petrópolis e no Rio de Janeiro alguns poucos ouvintes puderam acompanhar a distância a fala de Epitácio Pessoa abrindo, oficialmente, os trabalhos da Exposição Internacional do Centenário da Independência. Era a primeira transmissão de rádio realizada no Brasil.

A novidade daquela quinta-feira, 7 de setembro de 1922, se somava aos esforços do governo republicano de utilizar as comemorações do centenário para demarcar a posição do Brasil na comunidade de nações consideradas civilizadas e modernas. Seguindo tal intenção, a vasta programação de festividades incluía, também, congressos científicos, desfiles cívicos e militares, jantares de gala, espetáculos teatrais, concertos, torneios esportivos, inauguração de museus e monumentos e o lançamento da pedra fundamental da nova capital da República no Planalto Central.

Mas as pompas dos grandes eventos e das comemorações oficiais eram proporcionais à instabilidade política e social que atravessa o país naquele momento. Ano eleitoral, 1922 parecia indicar que o pacto das oligarquias estaduais estava ruindo. Alegando fraude, o candidato derrotado se recusava a reconhecer o resultado das urnas. Na esteira das insinuações, dois meses antes dos festejos, estourava na capital da república um levante militar para depor Epitácio Pessoa e impedir a posse do presidente eleito Artur Bernardes. E na praia de Copacabana os cariocas testemunhariam um longo conflito entre os militares revoltosos e as forças governistas. Resultado: as comemorações do centenário foram realizadas com o Distrito Federal em estado de sítio.

Dos subúrbios de Todos os Santos, Lima Barreto, um dos maiores cronistas da cidade à época, acompanhava as agitações, os preparativos e as festas cívicas. Embora já estivesse bastante debilitado fisicamente em decorrência do alcoolismo, continuava publicando com regularidade na imprensa. Escrever, aliás, era para ele uma dupla necessidade: financeira e existencial. Assim, as comemorações do centenário, seja servindo de tema principal, seja aparecendo de relance, estiveram presentes em algumas das crônicas que ele enviou para a revista Careta, ao longo do ano de 1922. 

No olhar crítico de Lima Barreto, a efeméride da emancipação política recebia contornos muito diferentes das imagens ufanistas produzidas pelas narrativas oficiais. Para o cronista, as festividades eram estranhas ao povo da cidade do Rio de Janeiro, que as acompanhava sem grande entusiasmo. Não que isso significasse indiferença, pois aos eventos esportivos a população comparecia com atenção. No entanto, certamente havia, segundo ele, incompreensão do que se comemorava. Afinal, ao povo pobre da cidade, que sacolejava nos trens da Central do Brasil, caberia questionar com desalento: “Que me adianta José Bonifácio, Pedro I, Álvares Cabral, o Amazonas, o ouro da Minas, a feérica Exposição, o Minas Gerais, se levo a vida a contar vinténs para poder viver?”

Na verdade, na leitura das crônicas de Lima Barreto se percebe um argumento quase constante de que o centenário da independência pouco importava nas comemorações. A efeméride teria se tornado mero detalhe, quase um pretexto para transformar a cidade em canteiro de obras e em palco para os grandes eventos da exposição internacional.

As obras, por sinal, estavam atrasadas. Lima ironizava dizendo que o arrastado desmonte do Morro do Castelo talvez levasse mais uns 50 anos para ser concluído. A mania de inauguração, a que todos pareciam se curvar, não ajudava. Inaugurava-se qualquer coisa. Até mesmo o início da venda de ingressos para a exposição era motivo para cerimônias solenes. Ao prefeito da cidade, Carlos Sampaio – um desmontador, no vocabulário do cronista –, o importante era inaugurar. E, claro, aproveitar a oportunidade para discursar.

Em um dos seus textos Lima Barreto deixa uma sugestão à comissão responsável pela organização dos eventos comemorativos. Era importante construir uma estátua que resumisse “nossa cultura política em 100 anos”. A polêmica, dizia ele, seria definir qual personagem poderia ser eternizado em bronze. Os monarquistas escolheriam D. Pedro II; os jacobinos Floriano Peixoto; os positivistas Benjamim Constant; e os oportunistas o presidente de ocasião. 

Na sugestão satírica, Lima Barreto pôs em cena o jogo de disputas pela memória. A questão colocada, em outros termos, é quem deve ser lembrado? E, por oposição, quem deve ficar esquecido? Nas diversas respostas viriam embutidos projetos políticos e projetos de nação distintos. Inclusive nas respostas do próprio Lima…

Afinal, o autor não deixou a sugestão pela metade. Ele complementou defendendo que Oldemar Lacerda deveria ser o homenageado como figura mais representativa dos 100 anos de política nacional. A referência de Lima era ao responsável por falsificar cartas assinadas por Artur Bernardes, em uma tentativa de provocar a indisposição dos militares com o então candidato à presidência. O autor de Triste fim de Policarpo Quaresma usava, assim, do tom jocoso para manifestar a sua decepção com a república das oligarquias e, por extensão, com a política nacional.

Era Lima Barreto pondo sua literatura militante em ação para lembrar que a nação das transmissões de rádio, dos espetáculos de gala e dos palacetes da exposição estava apartada de quem morava nos subúrbios e andava nos trens da Central. Para denunciar a política viciosa das fraudes, das falsificações e das quarteladas estimuladas. Para avisar, enfim, que o 7 de setembro era só um detalhe.

1Doutorando em História Política (PPGH/UERJ). Integrante do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação (NEPHE/UERJ). Pesquisador do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES/UERJ). E-mail: vclvieira@outlook.com


Imagem de destaque: Quadros de Lima. Shayenne Schneider. 2021 (Uso autorizado pela artista).

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