Para se alimentar, basta a terra! – Parte 1

Aleluia Heringer

Segundo Leonardo Boff (2012), os nossos ancestrais, após a colheita, não comiam sozinhos, mas antes, “distribuíam os alimentos e comiam-nos comunitariamente”. Com o passar dos tempos a ideia não era somente cozinhar, mas dar sabor aos alimentos. “Consumir comensalmente é comungar com os outros que conosco comem. É comungar com as energias cósmicas que subjazem aos alimentos, especialmente a fertilidade da terra, o sol, as florestas, as águas e os ventos”. Até aí tudo bem, contudo algo mudou radicalmente, não na mesa e nos pratos, mas nos bastidores da produção dos alimentos.

Nossos antepassados e até recentemente (metade do  século  XX) não lidavam com algumas das variáveis que nos afastaram léguas da nossa comunhão com “as energias cósmicas que subjazem aos alimentos”. Essa comunhão proposta por Boff se aproxima da palavra “dieta” no latim diaeta, que vem do grego díaita que significa “modo de vida”. Sim, comer fala de nossa vida. Ingerimos aquilo que será endereçado às nossas células e tecidos. Está em nossas mãos, a todo o momento, escolher a saúde, a vida e aquilo que nutre. Em troca, teremos disposição e vitalidade.

Para além do benefício pessoal, ao montarmos nossos pratos, estamos acionando e fazendo parte de uma cadeia de produção que o alimento percorreu. Enxergar para além do cardápio é pensar na perspectiva de uma cultura ecológica. Compreende também alargarmos a nossa visão em relação à pegada que deixamos com a nossa dieta ou modo de vida.

DIAGNÓSTICO
Pela primeira vez na história, hoje morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos, afirma Yuval Noah Harari (2016)2. Segundo esse autor, no início do século XXI, o ser humano médio tem “muito mais probabilidade de morrer empanturrado  no  McDonald’s que de seca, de Ebola, ou num ataque da Al-Qaeda”. Por conta de uma dieta rica em açúcar, gorduras saturadas e pobre em fibras, chegamos em 2019 com o maior índice de obesidade dos últimos treze anos. Segundo a OMS, a obesidade é uma epidemia do século XXI. No Brasil, mais da metade da população, 55,7%, tem excesso de peso3.

Além do impacto na saúde das  pessoas,  impactamos  o  planeta. Seja no cenário mais otimista, como o descrito no livro “Abundância: o futuro é melhor do que você imagina” (2012), bestseller no New York Times, ou no mais pessimista, como “A Terra Inabitável” (2019), de David Wallace-Wells, seja pelos relatórios do respeitado e conservador Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), a alimentação da população mundial é um assunto que entra em qualquer discussão séria sobre a crise climática que estamos vivendo. A produção global de alimentos já responde por cerca de um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa.

Nos bastidores da produção de alimentos provenientes da indústria animal, temos algo a considerar. Pesa sobre esses animais, que denominamos como domesticados para consumo humano, o nosso maior distanciamento ético e afetivo. Por tradição, cultura, religião ou gosto pessoal, há um grosso véu que nos impede de enxergar maus-tratos ou crueldade na forma como eles nascem, vivem e morrem. Faz parte da nossa cultura que seja assim e ponto final.

A população brasileira é urbana desde a década de 1960. A vida nos grandes centros urbanos nos afastou da convivência com o mundo natural.  Cercamo-nos  de  artificialidades  e  deixamos  de  acompanhar o que estava acontecendo no campo. A cortina fechada impossibilitou aos comensais avistar os bastidores onde ocorriam as mudanças. Uma delas é que o animal que pastava ou ciscava passou a ser considerado commodity (mercadoria) e virou assunto de grandes investidores que movimentam a bolsa de valores.

O bezerro foi separado de sua mãe; o pintinho macho foi descartado, por não ter serventia na indústria da galinha poedeira; o porco passou por um processo de engorda, e a vida de um frango se resume em média a 40 dias, quando, então, segue para o abate. Isso, apenas para citar alguns processos que coisificam o animal não humano.

Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si, em vários trechos, nos alerta que devemos reconhecer os seres vivos não como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano (LS, 81). Afirma que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acaba de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos (LS, 92), e que devemos reconhecer nas outras criaturas o seu valor; e tratar com desvelo os outros seres vivos (LS, 211). Sua visão aponta para o entendimento de que as diferentes espécies não são recursos exploráveis (LS, 33). Infelizmente, no lugar de mordomos, de cuidadores, transformamos as vidas dos animais em tormentas.

Os comensais que estavam à mesa não relacionaram que a alimentação baseada em produtos de origem animal tinha grande parcela de responsabilidade nas emissões de gases de efeito estufa. Não perceberam que os grãos com alto teor de proteínas, como a soja, que deveriam alimentar pessoas, estavam sendo desviados para a produção de ração. A fome não era por falta de grãos, mas gerada pelo seu desvio e desperdício. Não se atentaram que ingeriam calorias vazias e gorduras saturadas e que o alimento não mais nutria. O sabor não era natural e muito menos vinha das frutas ou ervas frescas, mas falseado por ingredientes com os poderes de transformarem fórmulas em quaisquer tipos de sabor, cor, textura, regados a muito açúcar, óleo e sal.

Enquanto compartilhavam essa comida e praticavam a sociabilidade, não perceberam que as florestas estavam sendo derrubadas para a abertura de mais pastos e que o cerrado estava tomado de latifúndios para a plantação de soja. Perderam a cultura das hortaliças e dos alimentos provenientes da terra. O  acervo gastronômico foi se  perdendo e, no lugar, receitas baseadas em carne, leite, ovos e derivados ocuparam a paisagem e tornaram as pessoas viciadas, literalmente, dependentes da indústria. Esta, percebendo o interesse e o aumento de consumidores, acelerou cada vez mais os seus processos, para atender a tamanha demanda. O setor de marketing criou produtos e inventou novas necessidades. Os veterinários, para acelerar a produção, aperfeiçoaram os processos de inseminação artificial e os engenheiros propuseram novas instalações, cada vez mais exíguas.

Não perceberam que, no Brasil, o rebanho bovino superou o número de comensais. Esses milhares de mamíferos de quase 600 quilos precisavam de espaço, de comida, de água e tinham necessidades fisiológicas (média de 30 quilos de fezes/urina/dia/cabeça). Para abrir passagem e pastagem para o rebanho e a soja, povos tradicionais foram dizimados, rios contaminados e florestas queimadas. Os comensais não perceberam que seus corpos estavam com proporções/medidas exageradas, que tiravam deles a mobilidade e a saúde.

Continua…


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