Os bilreiros de março (Parte I)

Ivane Perotti

Dormia o mundo. Folhas de espirradeira desciam em perigosa cautela: espadas verde-escuras sombreando os talos a pino. O vermelho-sangue do oleandro cobria as flores duplas. Coroa de pétalas. Março despedia-se em plena floração. Não contasse o mundo com o galope dos medos, os bilreiros passariam despercebidos na Amazônia de meusdeuses. Metros de altura vertendo leite floral. As bolotas amarelas, gorduchas de brilho e sementes, só em abril. Festança para os animais. Afeito à solitude incorpórea, talhado à mão e benção, Efon nascera do sincretismo suplicioso das matas. Remansado entre mundos e necessidades. Hirsuto como a noite que não dorme. Vivia na floresta, à cauda fiada das divindades. Não se disfarçava o avanço dos tratores. Mineravam a terra. Extraíam as riquezas. Nem Curupira, nem Cobra Norato, ou Mapinguari adornavam a exploração. Expugnavam o útero da mãe natureza. Crateras e clareiras ameaçavam os filhos da terra. Orò sofria. Ruídos de invasão chegaram ao rosilho. Madeireiros temem escuridão. Não eram. Efon os viu. Olhos engrupidos de medo. Densos de um querer sem favor. A pelagem negra do rosilho estrepitou faíscas. Herança dos cafres, efons da África Subsaariana. Agitou as folhas de alevante. Estremeceu o manto amarronzado que forrava o chão úmido. Afundou. Cresceu em tonelada. Riscas de ataque avançaram. Cheiro de casco antigo. Patas amalgamadas pelo intento. Decisão.

O tronco maduro do bilreiro recebia os dentes da serra. Gemia. Líquidas, desciam as flores brancas por sobre o véu de morte. Sacudidas pelo avanço do ferro, salpicavam a noite. Moribundas, debulhavam-se às costas dos invasores. Em brasa fria sangrava o espírito da natureza. Sem mais rodeios, o hálito da manifestação tomou a nuca dos criminosos. Eriçados pelo sobrenatural da culpa, arremeteram o verbo:

 – Arra

 – Má rapá?! Que só! Eita! pau

 – Borimbooora!!!

 – A gente vai inté o tucupi.

 – Vamu pegá beco!

 – Leso! Mete a serra!

Hálito de espírito gruda. Sorve o tutano da alma desprevenida. Friagi! Visagi! À ordem, avançou o arco da serra. Lenta escorria a seiva crua. Quente. Contrita. Soluços do bilreiro batiam antecipando luto. Lancinantes. Como as cantigas das carpideiras cansadas da morte. Sorte. Quem a tem? Florinhas do final de março desbastavam embriões. Úteros violados perdiam os frutos de abril. Tombava o camafeu da mãe natureza na tênue rede sobre o berço amazônico. 

Efon perfilou os chifres arredondados. Gancho de morte prévia. Abertos como a lua em quarto. Compactos como ossos marinados em nega-mina, vingas da escravidão. A investida de Efon ganhou corpo. Massa. Visão. Mocambos e autóctones, caboclos e quilombolas sentiram o resfolegar do rosilho. Quem não sabia, soube. Aos descuidados: novena em sextilha maior. Ardeu na consciência ausente o calor da fúria. Bramou sonora a ancestralidade do manso cafre. O ar pesou a manopla da serra. Terra. Plantas. Animais. Ofereceu-se a floresta em resposta de asè! sykyîé! Fechada. Úmida. Em resguardo de parto e rombo. Juntada herança no piso das tradições. Animais e homens. Devas. Trevas. Horas marcaram zero no verde da invasão. Desatou-se o raciocínio. Yurupari conjurou anciãos. Awọn ẹmi chamou outros. A floresta marcou batalha. Despidos de razão, abandonaram-se os homens. Perdidos, perderam-se. Como retornaram para o mocambo, ninguém contou. Surgiram nus, em pelo e pele, no batente da praça. Combalidos. Abalados. Ausentes da madeira para a fórmula ilusória de varrimento da gripe. Milagreira e fantasbulosa, bastaria um entalhe junto ao corpo. Império dos fátuos. Cravada às fuças do vilarejo, a nudez sebosa chocou. Gestos de molusco. Pernas de três. Do aumentado sobrou chifres. Medos. Visto e avistado: pavor. Otin, branda-fogo, alteia, cambuí. Ervas para acalmar. Dormir, ninguém dormia. Aperta-ruão mergulhou nas cuias. Bem tarde descobriram que, este, para a cabeça, só com magia. De uso para as senhoras. Banhos de assento. Moléstias de amor na lua fraca. Quebranto do sexo. Milho-de-cobra ferveu e aventou-se assentamento. Disso, um pouco mais de meio, entendia-se. A paragem era uma grande misturia. Das misturas que se alastraram e entre as que reinavam solo, a liderança deu saída. O mato era coisa santa. Os santo reconhecia. Mas ao medo do rosilho corria lambança. Alguns brocados já pensavam capar o gato. Acostumara-se o povo a ficar de bubuia. Por dias o mocambo verteu palavras. Titubeio. Entrar na floresta? Por mapa, só o bilreiro. As frorinhas cheiravam caminho. Dava para reconhecer o ponto. Não dava ficar no meio. Onde foram rezar a fórmula? Coisa de abestado. Arre ééééégua! ( Continua)

Glossário

Efon: búfalo na Língua Iorubá – Nação Nagô

Orò: espírito da floresta em Iorubá

Arawak, Tupi, Jê, Tukano, Karibe, Pano: troncos linguísticos amazônicos 

Nheengatu: Língua Mãe, Língua Franca, comum a grande parte dos povos autóctones da Amazônia

Balata: Plástico natural proveniente da secagem da seiva da árvore maparajuba

/sykyîé / – ter medo, estar com medo (RODRIGUES, Aryon/UFSC/-Tupi antigo)

/yurupari /- espírito (RODRIGUES, Aryon/UFSC – Tupi antigo)

 /awọn ẹmi/: espíritos, em Iorubá

Brocado – esfomeado/falar amazonense

Capar o gato– ir embora/falar amazonense

De bubuia– ficar tranquilo/falar amazonense

Leseira baré – lerdeza, ou quando se faz uma besteira/ falar amazonense

Cobra Norato: poema de Raul Bop (lenda amazônica da Boiuna, cobra gigantesca)

Curupira, Mapinguari: personagens de lendas brasileiras e amazônicas – protetoras das florestas

/otin/: cachaça em Iorubá

Despombalecido: enfraquecido, combalido/falar amazonense

Mirim: pequeno/ falar amazonense

Pô-pô-pô: barcos que fazem a travessia pelo Rio Negro/falar amazonense

Meninos: bebês, no geral 

Uarini: farinha amarela, grossa, de mandioca fermentada, em bolinhas que lembram ovas de peixe da região amazônica

/osun/: em Iorubá, Mãe das águas doces, vive nas cachoeiras.

Iara, Mãe-d’água: segundo as lendas, uma sereia que povoa os rios da Amazônia

Macaba: mentira/falar amazonense

/odus/: histórias em forma de poesia, Iorubá.

/modupe/: obrigado, em Iorubá


Imagem de destaque: Wikimedia Commons

 

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