Objetos de Africanidades e Educação em Ciências

Geisieli Rita de Oliveira
Francisco Ângelo Coutinho

Crescemos escutando e estudando histórias sobre o Brasil. Essas histórias contadas em monumentos, construções, artefatos, livros escolares – e que desfrutam do status de oficial – são obcecadas pela totalidade, correm nos perigos das histórias únicas, construídas sob os “códigos ocidentais” e conduzem ao sentimento de inexistência das lógicas diaspóricas que assentaram nas terras de Pau-brasil.

Ao invés de tentar imaginar que enterramos as violências coloniais no passado, compreendemos que outras ciências e outros futuros são possíveis. É com “Brasis” que enxergam e escutam as tecnociências-afrodiaspóricas, que este texto aterra e focaliza na conexão Brasil-África.

O fio que nos conduz são os objetos de Africanidades. Archie Mafeje, intelectual sul-africano, define africanidades como uma forma de fazer-a-vida combativa que emergiu da recusa à colonização. Acrescentamos que elas são modos de produções tecnocientíficas, ou seja, articulam permanentemente a ciência e a técnica em uma rede que conecta e compartilha a ancestralidade africana.

Nas linhas destinadas a esse texto, não seria possível descrever este objetos de africanidades de modo a honrar sua multidimensionalidade. Todavia, assumimos este escrito como um experimento particular, em que articulamos insights que obtivemos por meio de estudos de obras de Bruno Latour, com nosso desassossego em pensar a agência de objetos de africanidades na educação em ciências.

O noz-de-cola, por exemplo, como objeto de africanidades, seu fazer e refazer agenciou e agencia políticas ambientais, sociotécnicas e raciais. Por meio da sua classificação e uso botânico, ao longo dos nossos tempos, é possível perceber que as práticas tradicionais demonstram uma extensa compreensão das plantas, produzindo políticas e técnicas, que vão da utilização no preparo de medicamentos caseiros até formulação primária do famoso refrigerante Coca-Cola®. Hoje, milhões de pessoas ingerem extrato do noz-de-cola como um dos ingredientes em produtos criados por indústrias farmacêuticas, biomédicas e alimentares.

Contudo, seu cosmos é mais amplo, onde pode também ser conhecido como Obi. O Obi é o batimento cardíaco da África Ocidental, pois, os três maiores grupos étnicos da região se relacionam e se associam a ele. Um refrão comum diz que os Iorubás produzem Obi, os Hausa consomem, e os Igbos veneram. Devido ao fato de ser colhido predominantemente no sudoeste de língua iorubá, muito é exportado para o Hausa Norte, onde se diz que os homens têm um pedaço constantemente em suas bocas, e serve a funções sociais cruciais no leste Igbo.

O consumo e circulação de Obi, mostra como a diáspora transatlântica fomenta arranjos e reinvenções nas comunidades afrodiaspóricas. As sementes foram plantadas no Brasil no século XVI. Entre os que lucraram com a comercialização de Obi estava José Francisco do Santos, escravo brasileiro que comprou sua liberdade e retornou ao Daomé (Benin). Ele manteve um negócio de sucesso entre as décadas de 1840 e 1870, transportando óleo de palma e nozes de cola para a Bahia.

O cosmos do noz-de-cola e do obi, tanto botânico quanto de origens celestiais –embora os dois dificilmente possam ser separados –, traz uma totalidade espaço-temporal, na qual todas as coisas existem e através da qual todas as coisas estão conectadas. Um mesmo objeto cruza a botânica e o cosmo, ao qual se prende um curso de ação coletiva de produção do conhecimento sobre a realidade. São agentes ativos e participam de uma malha aberta de associações – rede – que conecta científico e político, tradicional e moderno, acadêmico e popular, micro e macro, individual e coletivo, humanos e não-humanos em seu lugar.

Suas histórias e práticas tecnocientíficas, não se encerraram quando chegaram na terra-de-pau Brasil – aqui eles contam outras histórias. Como habitantes de um solo afrodiaspórico, estamos inseridos e enredados com essas redes e, assim, cogitamos que a performance e os rastros das Africanidades podem nos indicar modos próprios de ensinar e aprender.

Isso pois, os objetos de Africanidades não apenas estabelecem relações, mas também as mantêm (ainda que temporariamente). Assim, merecem mais atenção, pois são máquinas do tempo que representam coisas em diferentes ordens temporais simultaneamente. As performances desses objetos são em si complexas, seguem como uma forma de produzir e estar no mundo. Levar o Obi ou o noz-de-cola para educação científica é mobilizar um emaranhado de narrativas e práticas tecnocientíficas, é um exercício de olhar as entrelinhas, do fazer ciências, das formas como produzimos conhecimentos na/para educação básica. Isso se baseia na ideia de que tornar as coisas presentes é tornar outras coisas ausentes. Pense nas histórias não contadas! Pense nas histórias dos “Brasis”!

Sobre os(as) autores(as)
Geisieli Rita de Oliveira: Graduada em ciências Biológicas (UEMG), mestre em educação tecnológica (CEFET-MG), doutoranda em educação em ciências (FAE-UFMG), Coordenadora executiva do projeto Afrociências (CNPQ- Programa ciências na escola).

Francisco Ângelo Coutinho: Graduado em ciências biológicas (UFMG), mestre em filosofia (UFMG) e doutor em Educação (UFMG). Professor da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua na graduação e na pós-graduação. Líder do Grupo Cogitamus – Educação e Humanidades Científicas.


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