O que a qualidade dos dados nos ensina sobre a coordenação e integração na política de imunização contra à covid-19

Rômulo Paes1
Mônica Castro2
Gabriela Drummond3
Raphaella Carvalho4 

A equivocada notícia da aplicação de doses da vacina da AstraZeneca com data de validade ultrapassada, publicada na Folha de São Paulo em 2 de julho de 2021 e repercutida em grande escala por vários veículos de mídia, gerou inúmeras discussões nos âmbitos público e privado. A informação foi obtida através do cruzamento entre as datas de aplicação da vacina, disponíveis nos registros oficiais do Ministério da Saúde e as datas de validade de cada lote vacinal, registrados no sistema da Sala de Apoio à Gestão Estratégica (SAGE), também do Ministério da Saúde.

No mundo de dados abundantes e complexos, conhecidos pelo termo Big Data, tais cruzamentos de dados são cada vez mais fáceis de se fazer e em escalas cada vez maiores. Contudo, antes de se lançar uma suspeita sobre a administração pública, é necessário investigar as explicações alternativas para este evento. As prefeituras de vários municípios citados reagiram indicando se tratar de lançamentos incorretos da data de aplicação da vacina no sistema do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Este procedimento é feito de forma manual, um a um, não existindo um processo de validação e alerta automático das datas lançadas incorretamente.

As bases de dados do SUS representaram um avanço para o conhecimento da situação epidemiológica da população brasileira, desde a criação de sistemas como o Sistema de Informações sobre Agravos de Notificação (SINAN), Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), e Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), frente às deficiências dos registros civis para elaboração deste cenário. O Ministério da Saúde, entretanto, tem enfrentado desafios para a manutenção das bases, como a integração dos vários sistemas de informação e o desenvolvimento de soluções que permitam o monitoramento dos dados em tempo real. A modernização tecnológica é um caminho que começa a ser trilhado, com o desenvolvimento de alternativas como o Programa Conecte SUS e a Carteira Nacional Digital de Vacinação. A consolidação e ampliação dessa estratégia é de extrema importância, uma vez que já existem vários sistemas e técnicas que previnem esse tipo de erro, como leitura de códigos de barra ou QR Code, ainda pouco utilizadas no SUS.

A manutenção de bases de dados com boa qualidade é o melhor meio para avaliação dos serviços prestados à população e, também, para a identificação das necessidades dos cidadãos e formulação de políticas públicas que atendam de fato a essas necessidades. Este caso deve servir de alerta para a importância da proteção da atividade de produção e manutenção de dados públicos, já debatida anteriormente durante o período de pandemia, em momentos como o adiamento do Censo Demográfico de 2020 para 2022 e a mudança na divulgação dos casos de Covid-19, que culminou na criação do consórcio de veículos de imprensa para divulgação de informações sobre a pandemia. Defender as instituições e recursos voltados à criação e apresentação de dados no país é defender o direito de cada cidadão de conhecer a realidade em que vive e, com isso, compreender melhor os impactos das escolhas políticas e gerenciais nas condições de vida da população brasileira.

Para aqueles que trabalham com bases de dados administrativas em saúde, não é incomum se deparar com dados registrados incorretamente devido a falhas no seu manuseio. Esses dados são produzidos para diversas finalidades, tais como pagamento de prestadores de serviços de saúde (Autorização de Internação Hospitalar – AIH e a Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade – APAC) ou de Registro Civil (Sistema de Informação de Mortalidade – SIM). Também, podem ser encontrados dados incorretos em bases de dados produzidas e utilizadas pela iniciativa privada, não sendo desta forma um problema restrito ao setor público ou mesmo à área da saúde.

Uma campanha de vacinação tão urgente e de tão larga escala é uma operação de grande complexidade, envolvendo toda a logística de controle, recepção, separação, distribuição, armazenamento e aplicação de um grande número de vacinas num curto espaço de tempo, contando inclusive com voluntários. É razoável supor que possam ocorrer erros ocasionais como o lançamento incorreto de datas de aplicação de vacinas.

O que é surpreendente é como os principais atores do Programa Nacional de Imunização reagiram a essa questão: cada prefeitura envolvida analisou a situação e respondeu por si, e o Ministério da Saúde não se manifestou de forma organizada. A ausência de uma resposta coesa demonstra a precária articulação nacional para coordenar esta decisiva ação de combate da doença. O episódio da incorreção dos registros da imunização revela menos sobre as falhas operacionais do PNI e mais sobre a falta de confiança política entre os entes envolvidos na prevenção e tratamento da COVID-19.

 

1 – Médico, especialista em medicina social (UFMG) e PhD em epidemiologia pela London School of Hygiene and Tropical Medicine. É investigador sênior da Fiocruz Minas e pesquisador honorário do Instituto de Estudos do Desenvolvimento (University of Sussex, Reino Unido).

2 – Médica, Especialista em Clínica Médica e Saúde Pública pela UFMG, Mestre em Epidemiologia pela UFMG, Doutora em Saúde Pública pela Fiocruz, MBA Executivo pelo IBMEC-MG. Atualmente é Pesquisadora do Instituto René Rachou / FIOCRUZ Minas e Consultora de Gestão em Saúde. 

3 – Bacharel e Mestre em Estatística pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília. Atualmente, é pesquisadora do Instituto René Rachou/Fiocruz Minas.

4 – Bacharela em Sistemas de Informação e mestra em Ciência da Computação pela UFMG. Atualmente é bolsista do Instituto Renê Rachou / FIOCRUZ Minas. 

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Prefeitura de Bonito

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